Patrocínio de gigante espanhol escancara guerra silenciosa na África

Acordo milionário com time de futebol evidencia tensões geopolíticas no continente, enquanto países disputam recursos naturais e influências econômicas
por
Lucas Farias Oliveira
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18/09/2025 - 12h

Em julho, o Barcelona anunciou um acordo de patrocínio junto ao governo da República Democrática do Congo (RDC) pelo qual, durante os próximos quatro anos, a equipe catalã estampará um patch [adesivo na camisa] promovendo o turismo no país, que será tratado como “O coração da África”. Além do Barça, a RDC também fez negócios parecidos com o Monaco e o Milan. 

O acordo do patrocínio, segundo a TNT Sports, gira em torno de 1,6 milhão por quatro anos (aproximadamente R$ 10,3 milhões por temporada). Além disso, o negócio envolve a oferta de programas esportivos para jovens congoleses.

Fotografia do anúncio de patrocínio da República Democrática do Congo em conjunto com o FC Barcelona
Fotografia do anúncio de patrocínio da República Democrática do Congo em conjunto com o FC Barcelona / via FC Barcelona 

Da mesma forma que a República Democrática do Congo, a vizinha Ruanda também vem firmando acordos de patrocínios com gigantes do futebol europeu. Jogadores do PSG, Arsenal, Atlético de Madrid e Bayern de Munich passaram a estampar a frase “Visit Rwanda” em seus uniformes. A embaixada ruandesa em Londres apura que, desde que passou a estampar as camisas dos clubes, o turismo alcançou seu ápice histórico.

Esta disputa para patrocinar gigantes europeus se revela como um novo front de uma guerra que perdura desde julho de 2022. Ruanda e República Democrática do Congo vêm travando um conflito que já matou mais de 7 mil pessoas e gerou uma crise humanitária nos dois países. O jornalista Luís Fernando Filho, do podcast "Ponta de Lança", especializado em notícias do continente africano, destaca o empenho mútuo em controlar as narrativas midiáticas sobre a guerra civil. "O Visit Rwanda ou Visit Congo, para além de estimular o turismo nos dois países, é uma medida de posicionamento sobre os conflitos", diz.

Segundo maior país da África em extensão territorial, a República Democrática do Congo faz fronteira com nove países – por isso o slogan “coração da África”. Rica em diversos minérios, a nação é alvo de cobiça e de diversas interferências externas, o que a torna politicamente instável, resultando em levantes e revoltas de grupos armados. 

Um dos que têm interesse nos recursos minerais do país é Ruanda. Governada por Paul Kagame há 25 anos, Ruanda faz fronteira com importantes cidades congolesas, como Goma – principal região extratora de recursos minerais do país e epicentro do conflito. 

Em janeiro deste ano, a cidade foi tomada pelo grupo rebelde congolês M23. A facção alega ser fundada para proteger o direito dos povos tutsis que vivem a leste do território da RDC. O M23 acusa o governo de abrigar diversas milícias hutus, inclusive os responsáveis pelo genocídio da etnia tutsi, ocorrido em Ruanda, em 1994. De acordo com a ONU, após tomar a cidade de Goma, os rebeldes passaram a extrair minerais de forma ilegal e mandar para Ruanda, que, em troca, fornece tropas de apoio e armamento. 

Devido ao agravamento da guerra, mais de 400 mil pessoas deixaram suas casas no leste do Congo, segundo dados do Acnur (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados). 

Soldados do grupo M23 marchando em meio aos civis após conquistarem a cidade de Goma
Soldados do grupo M23 marchando em meio aos civis após conquistarem a cidade de Goma, no leste do Congo / via STR/AFP

Ruanda nega o financiamento ao grupo M23 e a atuação no território da República Democrática do Congo. Porém, Estados Unidos e União Europeia impuseram sanções ao país africano, apontando a atividade militar ruandesa em território congolês.  

No meio futebolístico, os patrocínios referentes às nações sempre foram alvo de polêmicas. “Do ponto de vista político e simbólico, o futebol acaba sendo um meio de propagação política. A República Democrática do Congo se posicionou contra a guerra no leste do país durante um jogo da Copa Africana de Nações em 2024. Chamou atenção do mundo o posicionamento dos atletas durante o hino nacional. Por outro lado, Ruanda vê no sucesso da seleção nacional uma forma de propagar a imagem de estabilidade nacional. Resumindo: se o nosso país for bem no futebol, Ruanda também estará em paz social”, afirma Filho.  

A presença de Ruanda nas camisas de grandes equipes europeias passou a gerar ainda mais incômodo nos torcedores pela relação do país com conflitos sangrentos na RDC, e porque, de acordo com a Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância), 39% da população ruandesa vive abaixo da linha da pobreza. 

Recentemente, esses patrocínios vêm sendo alvo de protestos das torcidas, que se mostram cada vez mais indignados com o negócio. O grupo de torcedores ingleses do Arsenal “Gunners for Peace” promoveu uma campanha usando até o maior rival para criticar o patrocínio. Em nota no X, o grupo manifestou sua indignação: “O Arsenal é um ótimo clube. Temos princípios. É por isso que o ‘Visit Rwanda’ precisa acabar. Este é o mesmo regime que financia uma milícia brutal com milhares de vítimas no leste do Congo. Achamos que qualquer coisa – literalmente qualquer coisa – seria melhor do que o ‘Visit Rwanda’. Até o Tottenham”. 

E, agora, a República Democrática do Congo, ao fazer negócio com diversas equipes europeias, passa a ocupar o mesmo território de conflito, usando o futebol para mostrar seu lado da história. “O Ocidente sempre foi conivente com vários conflitos civis que ocorrem em países africanos. A Europa, por exemplo, pouco fez ou se posicionou acerca da guerra entre Ruanda e República Democrática do Congo. Então, por mais que exista uma comunidade internacional batendo na tecla do sportswashing [limpeza da imagem por meio do esporte] são as mesmas que lucram com os patrocínios de ditaduras em outras partes do globo terrestre,” finaliza Filho. Em meio a esse pandemônio, os clubes, como instituição, parecem se deixar usar apenas para adicionar mais receitas milionárias aos seus cofres.