Parque do Goiabal é refúgio e laboratório do cerrado urbano

Local de ensino, pesquisa e mobilização social para a conservação do cerrado em Ituiutaba
por
JESSICA AMANDA CASTRO
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17/11/2025 - 12h

Por Jessica Castro

 

A cidade de Ituiutaba - MG guarda, bem ao lado do campus da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), campus Pontal, um tesouro ambiental. O Parque Municipal Doutor Petrônio Rodrigues Chaves, mais conhecido como Parque do Goiabal, é um dos últimos refúgios do cerrado em meio à malha urbana da cidade localizada no Triângulo Mineiro. Criado em 1977 para preservar a fauna, a flora e as nascentes da região, o parque hoje cumpre um papel que vai muito além da recreação: tornou-se um laboratório vivo para o ensino, a pesquisa e a extensão universitária.

Com cerca de 37 hectares, o Goiabal abriga uma rica diversidade de espécies nativas e cumpre um papel essencial na regulação do microclima urbano. O local já viveu dias de intensa movimentação: nos anos 1980 e 1990, era ponto de encontro para famílias e abrigava quadras, lagos e até um pequeno zoológico. Mas o tempo e a falta de manutenção por parte da gestão do município de Ituiutaba transformaram o cenário. O parque, abandonado, enfrenta atualmente diversos desafios como o avanço de moradias para dentro de sua demarcação, queimadas e poluição.  

Foi nesse contexto que a comunidade acadêmica percebeu o potencial científico do espaço. Professores e alunos da UFU, campus Pontal, começaram a utilizar o parque para aulas de campo, levantamentos ambientais e pesquisas científicas sobre o cerrado urbano. Aos poucos, o Goiabal ressurgiu como uma sala de aula a céu aberto.

Essa conexão com o local envolve cada pessoa que resolve estudar seu ambiente. O parque, hoje categorizado como APA pela Prefeitura, tem uma aparência clara de cerradão. Árvores grandes que hora se adensam, hora se esvaem em pequenas clareiras que servem de lar a uma comunidade pequena de macacos-prego, que já são levemente habituados com a presença humana.

A proximidade física entre a UFU e o parque é simbiótica. Separados apenas por uma rua, os dois espaços se complementam. Estudantes de Ciências Biológicas, Geografia e Química realizam ali desde monitoramentos de solo e vegetação até estudos de biodiversidade, erosão, fungos e musgos. Trabalhos de conclusão de curso e iniciações científicas utilizam o parque como base empírica, contribuindo para a produção de dados locais e para o fortalecimento da consciência ambiental na região.

Mais do que um campo de estudos, o Goiabal virou um símbolo de resistência: um espaço onde a ciência se entrelaça à comunidade, e o cerrado, tão ameaçado no Triângulo Mineiro, encontra defensores apaixonados. Em 2018, um grupo de alunos da UFU decidiu transformar o incômodo em ação. Nascia o Coletivo Goiabal Vivo, uma rede de voluntários comprometida em reativar o parque como espaço de educação ambiental e mobilização social.

A bióloga formada pela Universidade Federal de Uberlândia e membro fundadora do coletivo, Karen Evangelista Marques, fez parte do grupo durante 7 anos e neste tempo, lutou com os demais integrantes para chamar atenção à importância do parque para a comunidade. Karen relembra como foi o primeiro momento do coletivo: no início, em 2018, houve uma forte conexão entre as pessoas. Todos ansiavam pela reabertura e reestruturação do Parque do Goiabal e, a partir da iniciativa, surgiu uma aliança de amizade. O grupo passava horas e horas da semana pensando e planejando formas de desenvolver atividades de cunho ambiental que chamassem a atenção do público, ao mesmo tempo em que se reuniam nas casas uns dos outros para momentos de lazer e entrosamento. Era a partir desses encontros que as ideias surgiam.

Entre as atividades, os membros realizam mutirões, trilhas educativas, projetos de extensão e oficinas em escolas. Também produziu o documentário chamado “Um Olhar para o Cerrado” (2021), que retrata a luta pela conservação do bioma e o renascimento do parque.

 

 

 

No mesmo ano da produção do documentário, membros do coletivo descobriram que a prefeitura havia feito a recategorização oficial do parque, que agora era considerado uma Área de Proteção Ambiental (APA), categoria que permite o uso sustentável dos recursos naturais. Na prática, isso significa que atividades humanas podem ocorrer no local, desde que respeitem os critérios de conservação e garantam o equilíbrio entre o meio ambiente e a presença das comunidades.

A mudança, porém, trouxe uma flexibilização significativa nas regras de preservação. Diferente da antiga classificação de Parque, que proibia construções e moradias dentro da área, a categoria de APA admite esses usos sob determinadas condições. Karen e os demais integrantes ficaram bastante preocupados na época, pois não havia sido comunicada à população a nova classificação do Goiabal. A designação como APA abriu brechas para que alterações antrópicas fossem realizadas dentro do espaço.  A maior preocupação foi como essas mudanças poderiam impactar a vida silvestre local, especialmente a fauna e a flora.

Segundo o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, MMA, existem doze classificações de Unidades de conservação, UCs, sendo estas divididas em dois grupos: Proteção integral e Uso sustentável. Essas nomenclaturas são o que determinam sobre qual conjunto legislativo de proteção ambiental aquele ambiente estará sujeito.

 

Pandemia

Anos após a pandemia, algo natural ocorreu: os antigos membros do Coletivo seguiram caminhos diferentes, o grupo se desfez e novas pessoas, com ideias e metodologias distintas, passaram a integrá-lo. A principal diferença para mim foram, de fato, as novas direções metodológicas que surgiram, mas sempre mantendo o mesmo ideal.

O Goiabal Vivo tornou-se, assim, um elo entre poder público, universidade e comunidade mostrando que a defesa do meio ambiente é também um ato de cidadania. Os estudos realizados no parque são múltiplos e contínuos. Pesquisas de diagnóstico socioambiental, levantamento de espécies nativas, análise de solo e água e projetos de educação ambiental já renderam publicações e apresentações em congressos científicos.

Em uma das trilhas, é possível observar o contraste entre as árvores retorcidas do cerrado e os muros da cidade que avançam cada vez mais próximos. Esse cenário faz do Goiabal um espaço perfeito para compreender os impactos da urbanização sobre o bioma e para desenvolver estratégias de manejo sustentável em áreas urbanas. O parque é um grande laboratório de ensino-aprendizagem. Ele permite que o estudante veja, toque e sinta o cerrado, algo que nenhum slide poderia substituir. 

Parque do Goiaba, Ituiutaba - MG
Trilha educativa. Foto: Acervo Coletivo Goiabal Vivo

Palco de projetos de extensão, o local é protagonista em ações que envolvem crianças e adolescentes das escolas de Ituiutaba com o objetivo de apresentar para a geração mais nova o potencial ambiental que ali existe. O objetivo é reconectar a comunidade ao território, resgatando a ideia de que o Goiabal é um bem coletivo. Durante as oficinas, os alunos aprendem a identificar espécies de fauna e flora, a reconhecer o valor das nascentes e a entender como o cerrado regula o equilíbrio climático da cidade. Em algumas atividades, o coletivo leva até as crianças frutos secos, jogos educativos como jogo da memória com as espécies existentes no parque e palestras que aguçam a curiosidade científica.

 

Parque do Goiaba, Ituiutaba - MG
Palestra na escola municipal Maria de Barros, 2025. Foto: Acervo Coletivo Goiabal Vivo

 

Apesar dos avanços, o parque ainda enfrenta desafios: falta de infraestrutura, riscos frequentes de queimadas, lixo acumulado e pressões urbanas ao redor. A gestão pública é um dos gargalos. Sem estrutura formal de administração e com nenhuma verba, o parque sobrevive muito mais pela dedicação dos voluntários e da universidade do que por políticas efetivas. Por isso, o coletivo defende a criação de um conselho gestor participativo e a transformação do parque em uma unidade de conservação municipal reconhecida, com plano de manejo e investimentos contínuos.

Incêndio

Em 2024, uma tragédia atingiu o Goiabal em cheio. Na noite de 27 de outubro, uma quarta-feira, ocorreu um incêndio em parte da vegetação do parque, com fortes suspeitas de intencional. Segundo o Corpo de bombeiros e a polícia militar da região, cerca de 15 mil metros quadrados de vegetação foram devastados no processo. O coletivo verificou os danos causados pelo fogo, quase um ano depois do ocorrido, determinando que a situação continua deplorável. Segundo sua análise, várias partes do parque, se encontram amontoadas de lixo e com permanência de animais de cunho doméstico, como cavalos, prejudicando a vida dos outros animais nativos do cerrado. Além da persistência de outros problemas antigos, como a falta de cerceamento do perímetro e o descarte ilegal de carcaça pela área.

Parque do Goiaba, Ituiutaba - MG
Brigadistas e membros do coletivo apagando o fogo. Foto: Acervo Coletivo Goiabal Vivo.

O bioma cerrado constitui cerca de 23% do território nacional segundo a última análise do IBGE. O bioma que percorre o estado mineiro é constituído, em sua maior parte, pelo cerrado, porém com base no último estudo feito pela SEMAD, Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, a taxa de desmatamento do cerrado segue em queda sendo em 2023 duzentos e quatro mil quilômetros quadrados de desmatamento comparados ao índice de sessenta e sete mil quilômetros em 2024. 

Essa queda vem sendo representada há pelo menos seis anos, porém áreas mais afastadas como Ituiutaba acabam não sendo o centro do radar da Secretaria. Entre os animais que vivem ou frequentam o perímetro do parque, se destacam espécies ameaçadas de extinção como, Lobo Guará.

O Goiabal é considerado um dos últimos redutos de vegetação nativa do Cerrado em Ituiutaba, o que o torna um espaço de relevância ecológica e científica inestimável. Em meio a um território cada vez mais pressionado pelo avanço urbano e pela expansão agropecuária, o parque preserva fragmentos de flora e fauna que já desapareceram em outras áreas do município. Sua cobertura vegetal abriga espécies típicas do Cerrado mineiro, árvores retorcidas, gramíneas adaptadas à seca e uma fauna diversa que inclui aves, insetos polinizadores e pequenos mamíferos, configurando-se como um verdadeiro refúgio biológico em meio ao concreto e às plantações.

A importância do parque, porém, contrasta com o histórico de negligência e omissão institucional. Diversos planos e propostas de manejo ambiental elaborados por estudantes e moradores locais seguem sem implementação efetiva, revelando uma distância preocupante entre o discurso oficial de sustentabilidade e as ações concretas de preservação. O abandono do Goiabal é reflexo de uma lógica regional marcada pelo predomínio do agronegócio e da monocultura, setores que moldam a economia do Triângulo Mineiro e frequentemente impõem uma visão utilitarista da terra, reduzindo o valor ambiental a um obstáculo ao desenvolvimento econômico.

Esse contexto evidencia uma disputa simbólica e política em torno do território: de um lado, a perspectiva produtivista que privilegia a exploração do solo e a expansão de fronteiras agrícolas; de outro, a resistência ambiental que tenta manter viva a memória natural de Ituiutaba. Assim, o Goiabal torna-se não apenas um espaço físico de preservação, mas também um símbolo de resistência contra o apagamento ambiental e o silenciamento das vozes comunitárias que lutam pela sua proteção.

Mais do que uma área verde, o Parque Doutor Petrônio Chaves é um espelho da relação entre sociedade, ciência e natureza. É nele que estudantes aprendem sobre o cerrado e cidadãos redescobrem o valor do ambiente natural dentro da cidade, um lembrete de que o cerrado ainda resiste, e que a gente pode resistir junto com ele.