Impunidades como no caso da Mariana sempre ocorrem dentro do sistema de justiça, diz delegada

Para chefe da Delegacia de Defesa da Mulher, entre 2008 e 2016, situações misóginas são recorrentes em tribunais
por
Fernando Bocardo
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27/11/2020 - 12h

Lucia Bocardo ingressou na polícia civil em 1995, no cargo de delegada. Natural de Orlândia, no interior paulista, sempre trabalhou na região e viveu em Ribeirão Preto o período mais difícil de sua carreira profissional, quando assumiu a chefia da Delegacia da Mulher (DDM) entre 2008 e 2016. Bocardo vivenciou, ao longo de sua passagem pela DDM, inúmeros casos de violência doméstica e casos de agressão contra a mulher.

“Aproximadamente dez mulheres por dia apareciam, vítimas de violência doméstica. É um tipo de cenário que eu, infelizmente, me acostumei a lidar, o volume de casos era assustador”, comentou a delegada. A Lei Maria da Penha foi criada em 2006 e trouxe avanços na defesa da mulher, como o aparato das medidas protetivas, além de menores possibilidades de brechas na lei e aumento de pena para casos de violência contra mulher.

 Recentemente, o caso do estupro da influenciadora digital Mariana Ferrer ganhou grande repercussão em decorrência do conteúdo da fala do advogado do acusado de estupro, durante o julgamento, e da própria sentença. “Impunidades como no caso da Mariana sempre ocorrem dentro do sistema de justiça, somente muito recentemente houve maior mobilização e conscientização e a Lei Maria da Penha foi importante nesse processo, ainda sim situações misóginas permaneceram recorrentes em tribunais” disse Bocardo.

Em 2012, a delegada contou que enfrentou um dos casos mais revoltantes de sua carreira na polícia militar. Um professor, cujo nome não foi revelado para preservação das vítimas, foi acusado de assediar adolescentes de um colégio público na zona Leste de Ribeirão Preto. Inicialmente, a denúncia foi realizada somente por uma estudante e na sequência outras denunciaram abusos semelhantes.

“Na época o colégio realizou um cursinho popular para alunos do terceiro colegial, com faixa etária de 16 a 18 anos, o professor ‘queridinho da turma’ sempre participava do projeto e selecionava nas aulas suas alunas favoritas”, conta a delegada, responsável pela investigação na época. “O criminoso passou a mandar presentes, cartas de amor e até chegou a aumentar as notas da garota de 16 anos, que na ocasião demorou a enxergar a malícia do professor” comentou Boccardo.

Depois de algumas semanas o docente passou a perseguir a estudante, seguindo-a até sua residência e realizando aproximações mais incisivas, despertando suspeita nos pais da menina que imediatamente se dirigiram a DDM. A investigação não foi longa e no primeiro mandado de busca até a casa do acusado já foram encontrados cartas de amor escritas pelo professor e fotos da adolescente. Como não houve violência física o crime se enquadrou no Art. 216-A: "Constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função". A pena do crime é de somente um a dois anos de prisão.

“Após a condenação outras duas adolescentes declararam ter sofrido abusos semelhantes e somente uma quis relatar o inquérito. Infelizmente, nem a Lei Maria da Penha foi suficiente na proteção plena das mulheres e casos como de assédio raramente encarceram criminosos sexuais, muito em função da pequena pena”, conta Bocardo, Ela ainda se lembra que a “revolta e indignação” foram maiores por parte das mulheres da delegacia do que da população em geral, tendo em vista que o caso foi pouco noticiado e a mobilização popular não era grande como é atualmente.

“Para uma mulher, estar presente nesse sistema extremamente machista é muito difícil, ainda mais ocupando um cargo em que decisões judiciais não são tomadas, minha contribuição era muito mais no acolhimento e suporte da vítima do que na condenação do agressor em si. Nesse quesito o sistema evoluiu um pouco, mas as impunidades seguem ocorrendo”, desabafou a delegada. Ela está se aposentando em breve da carreira na polícia, e admite que o motivo tem a ver com as injustiças provocadas pelo sistema de justiça. 

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