Escrever sobre cultura no Brasil continua sendo um privilégio branco

O jornalismo cultural é "racista" para Thais Prado, que escreve no site Mundo Negro
por
Julio Cesar Ferreira e Danilo Zelic
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28/08/2020 - 12h

“Você tem de simplesmente ser o melhor e fazer um jornalismo de nível inquestionável”, afirma Miguel Arcanjo Prado sobre como é ser um jornalista negro que escreve sobre cultura, onde a produção é feita majoritariamente por brancos. Já a redatora do site Mundo Negro, Thais Prado, diz “Eu enxergo o jornalismo racista.”

De acordo com uma pesquisa realizada pelo GEMAA (Grupo de Estudos Multidisciplinar da Ação Afirmativa), os principais jornais do Brasil permeiam a desigualdade racial, como em: O Globo, que 10% são pretos, na Folha de S. Paulo, apenas 4% e no Estadão somente 2%. 

Miguel Arcanjo Prado, 38, jornalista há 17 anos e crítico da Associação Paulista de Críticos de Artes, já passou por veículos como TV Globo, Record, Band, Folha de S. Paulo, R7, Record News, UOL, Editora Abril e Gazeta.

Homem de terno e gravata

Descrição gerada automaticamente

Miguel Arcanjo - Coordenador de Extensão Cultural da SP Escola de Teatro e Editor do Blog do Arcanjo (Edson Lopes Jr./Acervo Pessoal)

Para ele, a cultura sempre esteve presente em sua vida, pois é neto de mãe Gigi, fundadora do primeiro bloco afro de Minas Gerais, o Afoxé Ilê Odara, o que facilitou sua paixão em escrever sobre. 

Miguel exerce um jornalismo cultural plural: “Nunca quis falar apenas de um nicho, tenho uma percepção abrangente do que é cultura. E, ao abarcar todos, também crio um jogo de valoração equitativo na percepção do grande público.”

Embora tenha passado por várias redações, Arcanjo enxerga a desigualdade racial presente no jornalismo, sobretudo cultural. “Nas redações que passei geralmente tive poucos colegas negros. Muitas vezes éramos dois em um universo de mais de cem.”

Thais Prado, 26, redatora do site Mundo Negro, arte educadora e remanescente do Quilombo da Caçandoca, conta que escrever sobre cultura e arte aconteceu a partir de seu envolvimento com exposições: "Iniciei como arte educadora em uma exposição sobre arte afro brasileira do Sesc.”

Mulher sorrindo com chapéu na cabeça

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Thais Prado - Redatora do site Mundo Negro (Acervo Pessoal)

Ela escreve sobre tudo, inclusive cultura, e ressalta a importância da representatividade do negro dentro do jornalismo, que para ela, vai além das questões raciais. “Negros podem e sabem falar sobre tudo. Não só de pautas relacionadas a questões raciais.”

Tratando sobre cultura negra, ela considera que “falar dos meus e para os meus em uma linguagem que os respeita é ajudar a manter a memória de pessoas pretas importantes para cultura”. Thais questiona também: “Quem melhor do que uma pessoa preta para falar sobre isso?”

Miguel conseguiu ocupar diversos espaços majoritariamente brancos, afinal ele foi “o único colunista negro durante muito tempo em dois dos maiores portais do país”. Atualmente é o único crítico negro e já foi vice-presidente da APCA. “O jornalismo e a crítica seguem esse caminho de uma estrutura racista, mesmo que de forma inconsciente.”

“Fato é: nas grandes redações brasileiras quem manda ainda é o jornalista homem, branco e heterossexual”, define Miguel. Segundo ele,  “infelizmente, seja na minha trajetória profissional, ou na de alguns colegas, o jornalista negro que consegue destaque na profissão precisa ser excepcional naquilo que faz, tem de simplesmente ser o melhor e fazer um jornalismo de nível inquestionável”.

Thais questiona a falta de aprofundamento quando o assunto cultural é abordado. “Criticam a estética, mas não entendem as origens daquilo”. Uma das questões está na forma da escrita: “Eu enxergo o jornalismo racista, incluindo o vocabulário que um branco usa ao escrever sobre um negro”. E ela dá como exemplo o título "Estudante é preso fazendo drive-thru de maconha", quando se trata de  branco. "Se fosse negro, a mídia logo estamparia como traficante.”

Para a redatora, além de cultura, é essencial abordar questões raciais. “As pessoas  precisam entender que não basta serem antirracistas só quando convém. A cada 23 minutos, um jovem negro morre no Brasil". E  ela aponta ainda para a sua própria atividade:  “Não tem como ser negro e não falar das questões raciais que tanto nos afeta. Mesmo eu podendo e sabendo falar sobre os mais variados assuntos, sendo mulher, negra e quilombola, eu respiro questões raciais.” 

Já Miguel amplia o debate dizendo que “há um machismo muito forte nas redações, mulheres jornalistas também sofrem este tipo de questão nas suas carreiras, bem como jornalistas LGBTQIA+s.”

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