Criptozoologia: a “ciência” dos animais que não existem

Ao procurar por evidências de criaturas míticas, a criptozoologia revela a relação do ser humano com a mitologia
por
Alexa Reichmann
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18/10/2022 - 12h

Por Alexa Reichmann

 

Nas florestas úmidas da África Central, o missionário e cientista Thomas Savage procurava por provas materiais das histórias que ouvia. Os residentes da República de Gabão lhe contaram repetidas vezes sobre um “monstro negro” que haviam visto, similar a um “macaco gigante” e que poderia ser até um “homem-símio”. Em 1847, o fisiologista americano - que após uma década de incessantes buscas pela criatura encontrou apenas alguns ossos e dentes suspeitos -, publicou o primeiro artigo sobre tal animal, até então desconhecido na comunidade científica: o gorila. O que o texto de Savage e todos os outros estudos sucessivos tinham em comum eram os testemunhos orais dos gaboneses como argumento. Pois, na verdade, nenhum cientista jamais havia visto um gorila.

Muito antes dos relatos africanos do século XIX, a figura do gorila já havia sido tema de narrativas. O livro romano Historia Naturalis, escrito em 77 D.C, conta a jornada de seu autor, Plínio, o Velho, pela Índia e leste da África. A obra relata diversos animais até então desconhecidos para os romanos, como leopardos, moscas tsé-tsé e, é claro, gorilas. Além disso, Plínio descreveu espécies que até hoje não foram encontradas nem reconhecidas pela ciência, como o Cinocéfalo, um ser humano com cabeça de cachorro. 

A curiosidade expressa em Historia Naturalis pelo o que existe ou pode vir a existir além dos limites de nossa geografia e visão é um dos primeiros registros escritos do que move a chamada criptozoologia. Reunindo saberes da antropologia, biologia e zoologia, ela se dedica a estudar animais não reconhecidos pela ciência formal. Toda criatura descrita em lendas, mitos ou folclore é denominada criptídeo, um animal de existência desconhecida.

 

A "ciência" 

Apesar do interesse milenar pelo fauna oculta, o termo “criptozoologia” foi criado apenas em 1959, pelos cientistas Bernard Heuvelmans e Ivan Sanderson. Este último fora um prolífico autor escocês, cujo principal interesse eram os animais misteriosos. Em um de seus textos, “Talvez haja dinossauros”, Sanderson descreveu animais gigantes das florestas tropicais africanas. O texto despertou o interesse pelo assunto no francês Heuvelmans, com a ideia de existirem, ainda, animais não descobertos. Ambos os pesquisadores defendiam que a criptozoologia deve ter uma abordagem interdisciplinar, porém exigir um rigor científico.

E por falar em rigor cientifico, a criptozoologia é uma ciência? Seus adeptos defendem que sim; enquanto zoologistas, biólogos e afins a rebaixam a pseudociência. É preciso antes definir estes termos. A ciência é um método de estudo que coleta dados rigorosamente inspecionados e que, a partir destes, propõe explicações lógicas e justificadas sobre algo. Já uma pseudociência se utiliza de dados com pouco escrutínio, que muitas vezes tentam justificar as crenças e opiniões pessoais dos pesquisadores. 

Pode-se dizer que, na teoria, a criptozoologia é uma ciência. Afinal, ela coleciona informações de relatos orais e as examina por métodos sustentáveis. Embora a criptozoologia tenha em comum com a ciência a possibilidade de levantar hipóteses, as quais podem acabar sendo verdadeiras ou falsas, o tipo de dados coletados pela área em questão são extremamente duvidosos. 

Um ser desconhecido pode ser um fruto da imaginação, um delírio, o resultado de uma visão turva, ou até mesmo uma mentira proposital. Por mais que a base da criptozoologia seja cética e autocrítica, a sua principal fonte de dados, os humanos, não são testemunhas confiáveis. Todavia, é necessário relembrar que diversos animais que conhecemos na atualidade foram considerados criptídeos em outras eras, como na época de Plínio, o Velho.  

 

O ser humano

Bianca Simoni é estudante de medicina e fã da criptozoologia. A jovem de 22 anos conta que desde criança gostava de ver desenhos de anatomia e tentar reproduzi-los, fossem eles de pessoas ou animais. Até que um dia, já pré-adolescente, ela se deparou com uma gravura de um esqueleto de sereia e se assustou. “De início, senti medo, mas aquilo despertou minha curiosidade. Comecei a pesquisar na Internet sobre sereias, o que me levou a conhecer outras figuras míticas e extremamente intrigantes”, contou Bianca.

Entre estes seres, estavam o Pé-Grande, de origem estadunidense; o Monstro do Lago Ness, da Escócia; o Chupacabra, comum a todo o continente americano; e o Lobisomen, com primeiro registro na Grécia Antiga. “Esses são, em geral, os criptídeos ‘porta de entrada’ para o assunto. Apesar de popularizarem o tema, o que é fantástico, essas figuras de destaque ficam banalizadas por ‘notícias’ sensacionalistas”, disse a estudante.  “A criptozoologia 'pura' é a junção de relatos folclóricos com dados científicos. Ela não se resume a pessoas alucinadas tentando achar o Pé-Grande em bosques, ou procurando por evidências de vampiros em cemitérios macabros. Isso é apenas espetáculo da imprensa.” 

Com muitos livros lidos sobre o assunto e mais de 20 ilustrações autorais que retratam como seria a anatomia destes seres, Bianca explicou que a área está cada vez mais distante da zoologia, e tende a se voltar para seu viés antropológico. "A cultura e psicologia do ser humano estão com maior peso nos estudos ultimamente". Bianca, que prefere estudar os criptídeos nacionais - como o Boi Tatá, a Mula Sem Cabeça e o Saci Pererê -, disse que conhecer a criptozoologia brasileira a fez entender melhor sobre sua terra. “Estas lendas não são aleatórias. Todas traduzem traços marcantes da cultura nacional. A Mula Sem Cabeça, por exemplo, é de um moralismo machista gritante. A lenda fala da violação da castidade das mulheres. Qualquer uma que se apaixonasse ou tivesse relações com um padre viraria esta criatura perturbadora. Mas, é claro, nada acontece com o padre.”

 

A curiosidade

Precedente à Teoria da Evolução de 1859, de Charles Darwin, a divulgação das pesquisas sobre o gorila despertaram enorme interesse na comunidade científica. O desejo de ver este animal por inteiro não apenas resultou em finalmente achar esta nova espécie e catalogá-la, como também reancendeu as discussões sobre o parentesco dos primatas em sociedades ocidentais com imaginário fértil e incessante curiosidade.

A criptozoologia, talvez, realmente, não seja uma ciência. Mas ela, à sua maneira, impulsiona as ciências formais à própria evolução. 

 

“A importância do mito, das situações e dos seres criados pela imaginação humana, na proporção em que, ao se dirigirem diretamente ao nosso corpo, à nossa sensibilidade, podem nos propiciar melhores condições para sentir interpretar e compreender este mundo no qual existimos.” - Jean-Jacques Rousseau