Em 1918, o Brasil enfrentava a Gripe Espanhola, que tem aspectos semelhantes à Pandemia da COVID-19 que assola o mundo desde 2020.
Apesar das semelhanças, as duas pandemias diferem no tempo de duração no país. Enquanto, atualmente, o estado de calamidade se estende por mais de um ano, no passado, a situação no Brasil durou apenas três meses. Isso, porém, não significa que a Gripe Espanhola não foi letal. “Foram três meses em que 20% da população de São Paulo adoeceu, e 1% da população faleceu”, afirma o historiador e educador formado pela USP, Rodrigo Galvão, autor de “O Serviço Sanitário no Estado de São Paulo e a Pandemia da Influenza” .
O influenzavirus (H1N1), causador da Pandemia de 1918, acentuou a desnutrição, que somada à alta taxa de infecção, falta de higiene e às instalações médicas superlotadas, acarretou em um grande número de mortos. Uma análise moderna também afirmou que o grupo mais afetado era o de pessoas entre 20 e 40 anos. Isso porque o vírus desencadeia a produção em grande quantidade de citocina, que destrói o sistema imunológico mais resistente dos jovens e adultos. Existe também a teoria de que, anteriormente à doença de 1918, em 1830, havia uma variante da gripe muito parecida com a Gripe Espanhola. Portanto, os mais velhos possuíam anticorpos capazes de combater a Gripe com mais eficiência.
Essa análise concorda com o argumento do médico infectologista Éder Fernandes, do Instituto Emílio Ribas, acerca da letalidade do coronavírus. “Por que ele é tão letal, e tem essa característica endêmica? Porque ele é novo. Sempre que aparece um vírus novo, o organismo de nenhuma pessoa foi apresentado a esse vírus. E o que acontece, é que todo mundo que for exposto vai pegar. Assim, dissemina e todo mundo fica doente quase que ao mesmo tempo”, afirma.
A COVID-19 ataca o sistema imunológico do infectado. Suas principais vítimas são idosos acima de 60 anos, pessoas com imunossupressão, doenças cardíacas, pulmonares, entre outras. O vírus dá entrada ao corpo humano de forma direta- contato entre pessoas- ou de forma indireta- contato com superfície contaminada. As duas doenças são transmitidas pelo contato de gotículas de salivas, tosse ou espirro de uma pessoa infectada com o organismo de uma pessoa saudável.
Outro fator diferencial entre as pandemias é a velocidade de propagação dos vírus, isso acontece por conta dos avanços tecnológicos, que diminuíram distâncias. Os meios de transporte mais velozes na atualidade, resultaram na dominação simultânea dos continentes pelo coronavírus.
Mesmo sendo parecidas em questões de transmissibilidade, em 1918, a abordagem médica foi um pouco diferente, pelo conceito de hospital não ser próximo do que conhecemos hoje. Segundo Galvão, “A própria concepção de hospital era um pouco diferente. Na época, não existia assistência médica individual, quando a pessoa ficava doente, às vezes, ela era obrigada a se internar no hospital que também não tinha lugar para todo mundo”. A cidade não tinha estrutura médica para comportar esse número de infectados, por essa razão, segundo o historiador, houve a predominância de hospitais de campanha.
Segundo Galvão: “Os estados tinham muita autonomia. Nenhuma constituição brasileira foi tão federativa quanto a primeira constituição republicana de 1891”. Apesar de configurações políticas diferentes, no que diz respeito às ações governamentais em resposta à calamidade sanitária, notam-se algumas semelhanças. Na época, medidas de isolamento também foram adotadas, como o fechamento de locais que provocavam aglomeração a exemplo de: cinemas, teatros, museus, e cancelamento de eventos religiosos. As escolas foram fechadas, de acordo com um decreto do presidente interino da época, Delfim Moreira, os alunos seriam aprovados automaticamente.
Assim como hoje, a desinformação teve um papel na realidade pandêmica do século passado. “Na pandemia de 1918, não havia exatamente fake news, mas havia, por exemplo, muita desinformação. Quando se anunciava que a gripe tinha chegado ao Brasil, as pessoas faziam piada sobre isso. Diziam que a gripe teria sido trazida por um submarino alemão, num contexto da Primeira Guerra Mundial. Tinha até charge disso”, conta Galvão. Vale ressaltar que aquilo conhecido como “Fake News” nos dias de hoje não possuía o mesmo papel no surto da Gripe Espanhola. Era sim negacionismo, mas não utilizado como uma ferramenta para suprir narrativas políticas.
A princípio, jornais e revistas do país ironizavam a doença, o fato só passou a ser tratado com seriedade após militares brasileiros serem contaminados em uma missão, ao aportar em Dakar, no Senegal, em setembro de 1918. A doença chegou oficialmente no mesmo mês, através do navio Demerara. Segundo Rodrigo Galvão, o governo mantinha atualizações diárias sobre a situação sanitária: “Todos os dias o estado mandava comunicados para a imprensa sobre o andamento da pandemia. Quais eram as medidas que estavam sendo tomadas, quais eram as orientações que estavam sendo feitas. Isso era também enviado para os municípios do interior”. O que é similar às cotidianas coletivas de imprensa atuais. Apesar das ações do governo, a Pandemia não foi levada a sério por parte dos órgãos jornalísticos. Em artigo da revista “A Careta”, as ações do governo foram encaradas como “uma série de medidas coercitivas, preparando todas as armas da tirania científica contra as liberdades dos povos civis”, um discurso conhecido também durante a pandemia da COVID-19.
Embora a Gripe Espanhola no Brasil tenha durado apenas três meses, foi tempo suficiente para prejudicar a economia e gerar grande quantidade de mortos, exigindo dos estados a construção de caixões de forma massiva e a ampliação dos cemitérios, como ocorre de forma similar atualmente.
A Gripe Espanhola infectou ricos e pobres. Contudo, na época, os donos de terras se isolavam em suas fazendas longe dos centros urbanos, enquanto os operários eram forçados a trabalhar para que não passassem fome. Hoje em dia, essa é a realidade de empregados domésticos e comerciantes.
Outro fator que diferencia as classes sociais, tanto no século passado como agora, é a qualidade do serviço de saúde. Naquela época, as Santas Casas de Misericórdia tentavam exercer o papel dos hospitais públicos hoje em dia. Como a demanda era grande e a doença matava com certa rapidez, o número de mortos nas classes mais baixas aumentou drasticamente. Por essa razão, na época circulava a inverdade de que os médicos da Santa Casa davam aos pacientes um chá, que ficou conhecido como “chá da meia noite”, para matá-los e, assim, abrir mais vagas de leitos.
Em 2021, mesmo com a existência do SUS, a qualidade dos hospitais continua insuficiente, como afirma Galvão: “Uma coisa é você pegar COVID tendo acesso ao hospital Albert Einstein, outra coisa é você pegar covid numa região completamente precária sem atendimento e serviços básicos de saúde e infraestrutura. Nesse aspecto, as doenças no geral costumam penalizar mais a população mais carente”.
Ainda nesse quesito, é importante ressaltar que a situação do hospital não afeta somente os pacientes, mas também os profissionais que ali trabalham. “Eu ainda tenho a sorte de trabalhar em um local com uma boa estrutura, mas vários colegas estão em hospitais superlotados e com falta de medicamentos. Enfim, uma doença grave. Tem muitos hospitais que faltam recursos humanos capacitados para atender esse tipo de complexidade. Está todo mundo estafado, cansado”, diz o infectologista Éder Fernandes.
Durante os 3 meses no Brasil, a Gripe Espanhola causou cerca de 30 mil mortes. Isso equivale a 0,1% da população de 30 milhões de brasileiros da época. Entre eles, nomes como o ex-presidente Rodrigues Alves e o poeta Olavo Bilac. Enquanto o Coronavírus matou aproximadamente 450 mil dos mais de 214 milhões de habitantes.