“Pif Paf” inaugura jornalismo alternativo no Brasil

Caracterizado por seu humor crítico e corrosivo, impresso se posicionou como resistência frente a Ditadura Militar no país
por
Philipe Mor
|
23/09/2024 - 12h

No dia 21 de maio de 1964, pouco tempo após a instauração do Regime Militar no Brasil, Milton Viola Fernandes, mais conhecido como Millôr Fernandes, lançou o jornal “Pif Paf”. A revista, caracterizada por traços críticos, humorísticos e debochados, tinha como objetivo se posicionar como oposição as práticas do período de golpe e repressão que assombraram o país por mais de 20 anos. Além disso, o impresso, que foi censurado e durou apenas oito edições, foi o responsável por abrir as portas para um novo movimento na história das mídias brasileiras: o “Jornalismo Alternativo”.

Página de Pif-Paf n.1, de 21 de maio de 1964. Acervo Millôr Fernandes / IMS
Página de Pif-Paf n.1, de 21 de maio de 1964. Acervo Millôr Fernandes / IMS

Nascido em 16 de agosto de 1923, no Rio de Janeiro, mesmo local do lançamento do periódico, Millôr Fernandes é considerado como um dos expoentes da imprensa alternativa no Brasil. O dramaturgo e escritor brasileiro dono de um estilo próprio e de um humor ácido e inconfundível definia a si mesmo como jornalista.

Conhecido por seus textos críticos e sátiros ao mesmo tempo, Millôr trabalhou em diversos veículos brasileiros de comunicação e deixou sua marca por onde passou. Responsável por peças teatrais, que abordavam temas como liberdade, moral e política, Fernandes se tornou símbolo do nascimento do jornalismo alternativo no Brasil com a publicação do primeiro “Pif Paf”.

Para Silvio Roberto Mieli, Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP e professor de Jornalismo na Universidade, Millôr Fernandes “era o que se pode definir como o gênio da raça”. De acordo com ele, o escritor brasileiro “era um cara muito antenado com o seu tempo, muito ligado, inclusive às novas tecnologias”. Além disso, segundo Silvio “essa mistura de frasista, filósofo e anarquista, com um humor refinado e certeiro, nos ajudaria muito a compreender a realidade brasileira da época, relatada nas páginas do Pif Paf".

O impresso de Millôr Fernandes, lançado pouco tempo após o início da Ditadura Militar, se destacou como uma das primeiras manifestações de jornalismo alternativo no país. Responsável por desempenhar um papel crucial no enfrentamento do regime ditatorial no Brasil, o periódico funcionou como um símbolo de resistência em um período marcado pela repressão e censura.

De acordo com Silvio Mieli, “é insuficiente, muito pouco, nos referirmos ao golpe de 64 só como um retrocesso social, político e econômico. Não foi só um atraso, mas uma espécie de recalque existencial.  Uma mudança de rota de um país que poderia ter sido e que não foi. Um golpe fascista mesmo, que representa paralisia e violência”.

Diante desse cenário, o “Pif Paf” emergiu como uma voz contrária, que desafiava as regras e expunha os abusos da Ditadura por meio de uma abordagem crítica e bem-humorada. A proposta editorial do jornal era clara: utilizar sátiras para expor as falhas e injustiças do regime militar.

Millôr Fernandes e sua equipe utilizavam uma combinação de textos incisivos, ilustrações e crônicas provocativas para abordar assuntos políticos e sociais. Essa estratégia não apenas atraía leitores, mas também estimulava o pensamento crítico e incentivava a discussão sobre temas que eram tabus na mídia tradicional.

Silvio revela que “em geral, a tática era de, através de uma escrita primorosa, mostrar, acima de tudo, o quão pobre e tosco era o projeto do regime militar”. Mieli também afirma que “era uma tática de contraste mesmo. Diante de um regime absolutamente pobre, tosco, ignorante, você fazer exatamente o oposto”.

Página de Pif-Paf, n.3, p.24, de 22 de junho de 1964. Millôr Fernandes (texto) e Vilmar (desenho). Acervo Millôr Fernandes / IMS
Página de Pif-Paf, n.3, p.24, de 22 de junho de 1964. Millôr Fernandes (texto) e Vilmar (desenho). Acervo Millôr Fernandes / IMS

O professor da PUC-SP também afirma que “a partir do nome do jornal, já se tinha uma ideia do que essa gente queria com a revista”. Eles buscavam estabelecer um pacto lúdico com o leitor, “um jogo de cartas”. “Vamos brincar, vamos brincar com as coisas, vamos brincar com a realidade e encarar essa ditadura pelo aspecto do bom humor”.

Apesar do impacto político e social causado pelo impresso, na oitava edição, com uma fotomontagem que representava o general Castelo Branco comendo uma perna de Carlos Lacerda, o jornal chegou ao fim. No texto final, Millôr advertiu: “se o governo continuar deixando que circule esta revista, dentro em breve cairemos numa democracia”. Após a declaração do dramaturgo brasileiro, o periódico foi apreendido nas bancas pela polícia e não voltou a circular.

Por meio de uma abordagem inovadora e corajosa, o jornal de Millôr Fernandes ajudou a abrir caminho para uma maior diversidade de vozes e perspectivas na mídia brasileira. O “Pif Paf”, mesmo com a curta existência, influenciou a forma como a informação seria abordada e disseminada nos anos seguintes.

Para Mieli, a revista de Millôr “foi a mãe inspiradora de uma das mais conhecidas experiências da imprensa alternativa dos anos 70: o Pasquim”. Silvio também acredita que “o embrião do Pasquim está todo lá nos oito números da Pif Paf. É claro que houve uma mudança geracional, outras pessoas entraram no projeto da Pasquim depois. Mas a base da equipe era a mesma”.

Página de Pif-Paf, n.4, p.8 (à esquerda) e p. 24 (à direita), de 6 de julho de 1964. Acervo Millôr Fernandes / IMS
Página de Pif-Paf, n.4, p.8 (à esquerda) e p. 24 (à direita), de 6 de julho de 1964. Acervo Millôr Fernandes / IMS

De acordo com o pesquisador em Jornalismo Contra Hegemônico, “é incrível a atualidade da revista e a qualidade do trabalho de Millôr, é como se fosse um conteúdo atemporal. Se você digitalizar todo o material da Pif Paf, colocar na internet e tirar a data original, muita gente vai achar que esse conteúdo foi produzido agora. Mas ele já tem 60 anos!”. Para Silvio Mieli, “o maior legado, sem dúvida, deixado pela revista é o da valorização da linguagem e da inteligência do leitor”.