O passado volta à tona: O aumento da fome no Brasil

Brasil se preocupa com a possível volta ao ranking dos países com insegurança alimentar grave
por
Suzana Rufino e Silvana Luz
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13/05/2021 - 12h

 

Por Suzana Rufino e Silvana Luz

Francisco, 43 anos, nortista, estatura mediana, desnutrido e cansado, anda de cabeça baixa, porque tem vergonha de olhar nos olhos das pessoas enquanto empurra seu carrinho de reciclagem pela região do mercado municipal em busca de restos de alimentos. Todos dias ele vai às ruas em busca de papelões, latinhas, ferros, eletrodomésticos quebrados, qualquer coisa que dê para ganhar algum dinheiro com reciclagem para sustentar seus dois filhos e esposa que vivem em meio à papelões e madeirites à beira do rio Tamanduateí.  

Ao conversar com Francisco, percebe-se o olhar triste e agoniado, aquele que sabe o que é passar fome, sofrer por falta de oportunidade e indiferença das pessoas. “A fome dói, mas dói muito mais ver seu filho chorar e você não ter o que dar! Ver a criança ficar doente e não ter como socorrer! Eu e minha companheira deixamos de comer, tomamos água para enganar a fome para sobrar a nossas crianças que no melhor dia conseguem fazer uma refeição e preferimos que seja à noite para que consigam dormir. Além de buscar reciclagens também pegamos restos de comida no mercadão, lá sempre tem alguma fruta ou legume que não serve para vender, mas que salva a gente”, fala de Martins.

Todos migrantes saem de sua cidade/estado natal para buscar em outro lugar uma oportunidade de viver com qualidade. Porém não são todos que conseguem essa glória, e quando se depara sozinho(a) e sem ajuda, não ver outra saída que se sujeitar as ruas, a miséria e a fome.   

Maria da Conceição é um exemplo de que a fome e a miséria não escolhe idade e nem sexo, aos 64 anos, a mulher conta com lágrimas nos olhos e ao lado de seu fiel e único companheiro (cão) sua dificuldade e abandono. “Eu vago pelas ruas com esse meu único amigo e além da fome e do medo carrego a tristeza, não tenho um lugar para viver e quando consigo um lugarzinho para dormir na rua ou em alguma praça sou expulsa. Não tive filhos e não tenho mais família, sou de Juazeiro do Norte e vim para São Paulo em busca de uma vida melhor, fugi da fome do sertão, mas ela veio junto comigo. As vezes eu vejo pessoas entregando marmitas nas ruas ou algum bar antes de fechar me dá algum resto de comida, fico feliz e divido o alimento com esse meu amigo e protetor” (disse abraçando seu cachorro).

José Gomes, 51 anos, nordestino, também se enquadra na lista de migrantes esforçados que saíram de suas cidades e infelizmente não tiveram uma oportunidade de mudar de vida. Desempregado e morador em uma ocupação no centro de São Paulo retrata muito bem o drama que o Brasil enfrenta há muito tempo, o da fome. “Em agosto do ano passado eu trabalhava como camelô, mas minhas mercadorias foram apreendidas e eu não tive mais nenhuma oportunidade de trabalho, agora venho aqui todos os dias em busca de auxílio e eles me dão comida e ajuda psicológica. Tenho esperança de conseguir algum trabalho, porém fico chateado porque as pessoas acham que já estou velho para qualquer função, por isso ainda descolo uns trocados pegando latinha e guardando carro na rua. Única coisa que eu queria era viver com dignidade”

Os anos de luta do País para sair desse cenário não é mais lembrado, porque o agravamento da situação alimentar não permite mais que a população sonhe com um Brasil sem fome. Hoje mais de 84 milhões de brasileiros enfrentam algum grau de inseguridade de alimento - número que tende a aumentar caso o atual governo e as políticas públicas voltadas a essa questão não agirem a curto e a médio prazo.

O quadro atual é alarmante, mesmo antes da pandemia da covid-19 o Brasil já apresentava uma diminuição na qualidade de vida, devido o aumento do desemprego e cortes nos programas sociais. Com isso, a fome que antes tinha diminuindo voltou à tona preocupando a população mais carente.

O ex-diretor-geral da FAO (agência da ONU para a erradicação da fome e combate à pobreza) José Graziano da Silva, afirma que em julho do ano passado 15 milhões de brasileiros se encontravam em um grau elevado de insegurança alimentar e que dependiam exclusivamente de projetos não-governamentais voltados a alimentação. Essa conjuntura se deu por várias razões, sendo uma delas a crise política-econômica que se aprofundou em 2015 e continua impactando a vida da população, que sofre com o desemprego, diminuição de leis trabalhistas e rendas familiares.

Para tenta driblar essa tensão, muitos projetos autônomos junto com uma parte da população tem se mobilizado e contribuído com doações de dinheiro e alimentos para ajudar as pessoas em situação vulnerável como a fome. O SEFRAS (Serviço Franciscano de Solidariedade) é um desses programas que atende indivíduos em situação de rua (e outras) há 20 anos e ficou popularmente conhecido como Chá do Padre, por ser um centro de acolhimento, escuta e partilha na cidade de São Paulo.

Além da entrega de “quentinhas” são realizados atendimentos psicológicos, auxílio a encaminhamento a trabalho entre outros, porém com o aumento da procura pelos serviços e por atender em um espaço pequeno, fez-se necessário a criação emergencial da tenda”, relato esse contado por Frei João Paulo Gabriel, diretor-presidente do SEFRAS:

-- “É visível a mudança de perfil dessas pessoas, desde 27 de maio de 2020, quando se fez necessário montar a tenda na calçada em frente ao largo São Francisco. Aqui, além de  dependentes de drogas e álcool, também vem famílias que perderam suas fontes de renda e até tem onde morar, mas não conseguem comprar comida e buscam essa ajuda. A fome atinge vários perfis, tendo em vista o preço dos alimentos comparado ao rendimento familiar das pessoas. A alimentação passa, então, a ser o eixo principal de atuação dos franciscanos do SEFRAS, em especial aos nossos públicos de atendimento: população em situação de rua, imigrantes e refugiados, idosos sozinhos e crianças de comunidades pobres e ocupações. A tenda se transformou em um espaço simbólico onde conseguimos encontrar o reflexo da vulnerabilidade da estrutura social em que vivemos, e também, a força que tem uma corrente de solidariedadeNo início do isolamento, decidimos não fechar nossas portas para acolher, cuidar e defender aqueles que mais precisavam, como a população em situação de rua e de desemprego nas ruas de São Paulo e Rio de Janeiro. E nos deparamos com o cenário dramático da fome, que veio antes da pandemia da Covid-19”.

 As refeições são distribuídas de domingo a domingo no almoço e jantar (em média de 1200). Para atender essa demanda, as quentinhas são feitas em cozinhas da própria igreja, sendo elas instaladas na sede do SEFRAS no bairro do Pari e a outra na região do Bixiga. Todo o mantimento vem de doações. As demais merendas são feitas e montadas por voluntários. 

Com duas tendas franciscanas – uma segunda foi erguida no Largo da Carioca (centro do Rio de Janeiro) – cinco cozinhas sociais e outros seis polos de distribuição de alimentos, que incluíram 22 mil cestas básicas e kits de higiene e proteção. A Ação Franciscana de Enfrentamento à Pandemia foi uma resposta à emergência social, que está na base do SEFRAS como organização humanitária.

Embora fosse uma ação de emergência, os impactos duradouros da pandemia, em relação à desigualdade de renda e aumento da pobreza nos grupos já vulneráveis, demonstraram que a fome é um fator a ser combatido com ações de curto, médio e longo prazo.

A grande tenda, montada na frente da igreja no Largo de São Francisco, foi desmontada, porém o trabalho e a solidariedade continuam, agora organizadas no espaço do SEFRAS, conhecido pelos moradores de rua como “Chá do Padre”, que atende esse público há mais de vinte anos. Com a reorganização do espaço algumas vantagens foram destacadas:

•Ampliação da quantidade de pessoas atendidas no serviço – de 800 para mais de 1.000 diariamente;

•Distribuição de mais uma refeição no dia: o jantar;

•Os participantes podem receber a quentinha e levar embora, diminuindo a aglomeração de pessoas no espaço;

•Os participantes que não conseguem tirar a senha no início do dia, podem esperar e receber a quentinha;

•Os doadores entregam as doações direto no espaço e conseguem conhecer o serviço em funcionamento.

Todas as adequações feitas têm como objetivo maior atender à crescente demanda. É preciso seguir com a missão franciscana de garantir alimento para quem tem fome e continuar lutando para esperançar um mundo mais igualitário e livre da pandemia da fome.

Para contribuir com a doação de "quentinhas" e de alimentos não perecíveis, clique em https://fomebr.org.br/. E se deseja ser voluntario(a), acesse o formulário no site e receba as orientações ou entre em contato com a Central de Doações e/ou tire todas as dúvidas pelo telefone (WhatsApp) (11) 3795-5220.