Em hospitais, estudantes de medicina lidam com cancelamentos de cirurgias e ‘covidaço’ em UTI

por
Henrique Sales Barros
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08/04/2021 - 12h

Por Henrique Sales Barros

 

Certo dia, no início de março de 2021, a estudante de medicina Ana Júlia Araújo, de 20 anos, relata ter ido, acompanhada de uma professora, até o setor de UTI (Unidade de Terapia Intensiva) do Hospital Geral de Carapicuíba, na Grande São Paulo, onde estagiava desde o começo de fevereiro.

Na ala, a jovem estudante avistou um paciente que não parecia ter muito além de seus 20 anos. O enfermo estava isolado em uma sala, que possuía diversas orientações na porta alertando sobre os cuidados ao se entrar no ambiente, como uso obrigatório de face shield, roupa de proteção etc.

— “Professora, o que aquele paciente tem?” — perguntou Ana Júlia.

Inclinando o rosto aos poucos, como quem quisesse evitar responder à pergunta, a professora suspirou e, por fim, deu retorno ao questionamento:

— “Olha… Aquele paciente ali é um ‘covidaço’.”
— “Mas qual é a história dele?”
— “Ele tem 23 anos.”
— “Mas como está o quadro dele?”
— “Não passa de hoje” — respondeu a professora, em tom de lamentação.

Aquele foi o último dia de Ana Júlia em Carapicuíba antes da suspensão dos estágios devido ao aumento no número de novas internações por covid-19 na unidade, e a estudante não teve mais notícias do jovem com “covidaço”. Era o reflexo do estouro da segunda onda da pandemia no hospital.

Iago Valoti, 24, estudante do quarto ano da graduação de medicina da PUC-SP, em Sorocaba, no interior de São Paulo, iniciou o primeiro semestre de internato no Hospital Santa Lucinda, ligado à universidade, também no início de março, aprendendo a realizar cirurgias em pacientes — mas algumas operações começaram a ser postergadas.

Materiais necessários para cirurgias, como kits de medicamentos sedativos, começaram a faltar nas mesas de cirurgias. O motivo: o número de pacientes com covid-19 com necessidade de intubação e ventilação mecânica cresceu exponencialmente, e a prioridade passou a ser atendê-los.

“A gente acaba vendo algumas cirurgias, mas algumas um pouquinho mais complexas, que teria que dar uma anestesia geral em algum paciente, a gente não está podendo realizar”, diz.

Em 2020, o pico da média móvel de novas internações de pacientes com suspeita ou confirmados com covid-19 no Departamento Regional de Saúde de Sorocaba, segundo dados do governo de SP, foi de 66 novos internados, registrado em 20 de julho. Em 2021, até agora, o pico chegou a 140, em 25 de março — 112% maior que o do ano passado.

As cirurgias que começaram a ser canceladas foram as consideradas eletivas, sem caráter de emergência. Ao fazer atendimentos pré-operatórios e agendar os procedimentos com os pacientes, o estudante passou a ser orientado a alertá-los de que nada garantia que as operações seriam realizadas nas datas previstas.

“A gente tenta deixar da maneira mais clara de que ele (paciente) precisa de cirurgia, mas que não é de urgência, então é difícil essa comunicação. A gente entende como aluno, entende que a atenção tem que ser voltada para a pandemia, mas às vezes o paciente pode acabar não entendendo isso”, relata.

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Suspensões

Valoti não teve o internato no Hospital Santa Lucinda suspenso, o que o estudante avalia como positivo. Quando estiver formado, afinal, o futuro médico não poderá parar os trabalhos caso ocorra uma pandemia como a do novo coronavírus, de fácil transmissão e perigosamente mortal — muito pelo contrário.

A posição que a PUC-SP teve com a segunda onda da pandemia em 2021 foi o oposto da que a universidade tomou em março de 2020, quando optou por suspender não só as atividades presenciais e os estágios ambulatoriais como também os internatos. "A faculdade tentou proteger os alunos, parando tudo no ano passado”, avalia Valoti.

Ainda sim, o estudante passou a temer dois cenários de incerteza devido ao estouro da segunda onda da pandemia em Sorocaba: os internatos voltarem a ser cancelados ou, se continuassem mantidos, os internos passassem a atender pacientes com covid-19, prática que vem sendo evitada de forma generalizada pelas faculdades e hospitais.

Já Ana Júlia, que estuda no Centro Universitário São Camilo, em São Paulo, passou a ter atividades práticas em um centro de simulação no bairro da Pompeia, na zona oeste de São Paulo, no lugar do estágio. Por ser um ambiente controlado, ao invés de pacientes de carne e osso, a estudante passou a lidar com bonecos anatômicos.

“Eu vou para o centro de simulação e vou conversar com boneco, fazer exame físico em um boneco, vou avaliar tudo que tenho que avaliar em um boneco. É essa ‘prática’ que eu estou tendo, bem entre aspas, porque não substitui o paciente de maneira nenhuma”, ressalta.

As atividades em laboratórios e em centros de simulação são as únicas atividades presenciais que Ana Júlia vem tendo. As idas a estes lugares, por questão de segurança, não são feitas com a sala toda e nem sempre: ocorrem em grupos menores, de forma semanal ou em períodos de intervalo que podem variar de duas a três semanas.

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Formação e aprendizado

Com dificuldades para se familiarizar com as aulas virtuais, Valoti avalia que 2020, em termos de aprendizado, foi um ano ruim. “Acabo me distraindo muito fácil. Foi um ano que não consegui aproveitar muito”, diz. Ainda sim, o estudante da PUC-SP enxerga que qualquer prejuízo de conteúdo que vem tendo pode ser recuperado no futuro.

“É o que os professores falam: a gente (estudantes) faz a nossa faculdade”, diz. “Nós vamos acabar tendo o conteúdo, isso eles (professores) não vão deixar passar, mas, às vezes, será de uma forma diferente: algo talvez mais reduzido, e aí nós vamos ter que buscar mais [conteúdo] por conta própria do que o professor ficar passando ali”, afirma.

Já Ana Júlia, por estar no início da graduação, pensa que ainda possui muito tempo pela frente para recuperar qualquer conteúdo perdido. Ainda há quatro anos de faculdade pela frente, afinal. "Eu vou ter tempo de aprender”, diz.

“Nós temos professores muito bons, conseguimos se adaptar muito bem ao modo EaD (Ensino à Distância), e a parte prática, que a gente teoricamente perdeu, nós não perdemos porque nós ainda temos quatro anos de curso. Acredito que nós não vamos ficar assim por muito tempo”, diz.

“Ou pelo menos não por quatro anos — pelo amor de Deus!”