Lado A
Lecionar: Entre dois mundos
“Já tenho um costume no uso de ferramentas tecnológicas, o que poder facilitar o meu dia a dia nesse momento de interação à distância” Bruno Almeida, professor de história, filosofia e sociologia, do colégio Objetivo, também atua como diretor da rede de cursos técnicos Paulo Freire. Quando dito que há diferenças mesmo quando a tempestade é a mesma, é isso que querem dizer.
O Brasil tem enfrentado a pouco mais de dois meses, uma pandemia que atingiu uma escala global e, feito os professores se reinventarem a cada dia “mas de uma maneira geral nos primeiros momentos eu tive certo estranhamento. Justamente por não ter o contato visual com meus alunos” as famosas caras de interrogação não são visíveis por meio da tela do computador, o que os deixa apreensivos com a qualidade da aula. Assim como muitos professores, Bruno teve que optar pelas aulas online para não deixar seus alunos sem conteúdo. Ainda que haja mazelas, foi a alternativa encontrada fazendo os alunos transferirem suas dúvidas da sala para o computador “normalmente o professor quando está ensinando, ele fica sempre atento ao olhar dos alunos, e dessa forma a gente percebe se estão aprendendo ou não. Essa dinâmica é um pouco prejudicada no ensino a distância.”
Quando se perde a interação, para Bruno, perde-se um pouco do ensino. Ensinar também faz parte da socialização, coisa que está sendo proibido durante o distanciamento social, mas acima de tudo, tem muito a ver com humanidade, e as máquinas não estão prontas para isso “parece que a gente desaprendeu a dar aula, ou, aquele conteúdo. Porque muitas vezes nós estamos acostumados em transmitir informação através da lousa, ou slides. No processo de ensino a distancia você tem que reinventar esse caminho todo para alcançar seu aluno”.
Assim como Bruno, a professora de história de um colégio privado, diz estar tendo dificuldades para lecionar, mesmo sabendo que seus alunos possuem os recursos necessários para assistir as aulas, o tempo deles está cada vez mais ocioso e é difícil controlar a distração “dar aula à distância para criança é um desafio, a educação no nosso país não está preparada para isso” o planejamento está sendo feito semanalmente, coisa que antes, era organizada por bimestres “é muito uma forma de tentativa e erro” complementando a fala da professora, Bruno diz “A profissão já demandava bom tempo, hoje, – isso é impressão minha, e compartilhada pelos meus colegas – estamos trabalhando três vezes mais.” Como professor, ele não vê outra saída “vejo de uma maneira positiva a continuidade do ensino à distância durante a pandemia”.
Enem: Até nas dificuldades tem ‘privilégios’
O Colégio Objetivo está entre os que possuem melhor desempenho no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) que por decisão do MEC continuará a acontecer este ano, nos dias 1 e 8 de novembro. “O aluno que tem estrutura, o que tem acesso à banda larga acaba sendo favorecido por conta disso” foi levantada a discussão sobre a decisão do então ministro Abraham Weintraub, o vídeo de divulgação da prova fez uso de atores de classe média para expressar a importância de manter a prova, foi alvo de críticas por não atender a realidade da maioria dos brasileiros “não consigo concordar com nada que vem desse governo”.
O estudante Josué Guaita diz ser decepcionante ainda haver tantas diferenças sociais, e mesmo assim não darem a mínima para isso, quando entrado no mérito MEC e a mais nova propaganda. “Muito sem noção”, diz o garoto que está se preparando para o exame por intermédio de vídeo aulas e apostilas oferecidas pela plataforma Objetivo. “Eles falam como se todo mundo que vai fazer o ENEM tivesse recursos para se preparar”. O Exame Nacional do Ensino Médio é uma prova que abrange o território nacional, podendo usar a nota para universidades públicas e particulares. Bruno acompanha os dois mundos, dando aula em rede privada e sendo diretor na ETEC, ele percebe as diferenças nas dificuldades que os alunos estão tendo, e como à decisão de manter a prova pode prejudicar essa parcela da população “temos que ter a clareza de que nem todo aluno vai tem acesso a esse recurso”.
“Pensando na educação como ciência como alguém racional que trabalha na área da educação, e sabendo da realidade do aluno, quanto do privado, quanto do público. É uma atrocidade manter o ENEM” o professor de história e sociologia lembra-se da realidade do nosso país, e lamenta ter que discutir fatores que para ele, parecem óbvios. Josué acrescenta “a gente está no meio de uma pandemia, milhares de pessoas estão morrendo” já são mais de 13.993 mil mortes e 202.918 mil casos confirmados (15/05), de acordo com a secretária da saúde os números tendem a subir se o isolamento não for efetivado.
Suporte
“Nós já estávamos nos preparando para lançar uma plataforma online em 2020, então o projeto veio a calhar” as plataformas digitais servem para auxiliar os estudantes, são como mediadores entre professor e aluno. Desde sempre, as universidades tem contato com a via digital, assim como as escolas.
Sandra Regina da Costa trabalha como consultora em uma grande editora educacional do Brasil, localizada próximo a Avenida Paulista, SP. A editora cuida para que a escolas consigam chegar nos alunos “educação para todos” é o lema da empresa. “Conseguimos ver o desespero na voz das coordenadoras e diretoras. São escolas de grande e pequeno porte, desde bem localizadas até no interior de uma cidadezinha” todos os colégios são particulares, e basta serem parceiros para terem essa assessoria.
Lado B
Manifestações do dilema
No dia 16 de março de 2020, totalizavam-se 200 casos confirmados pela Covid-19 no Brasil, sendo 152 destes apenas no Estado de São Paulo. Neste mesmo dia, o governador do Estado, João Doria, em consonância com o Ministério da Saúde, decidiu por suspender as aulas da rede estadual e municipal de maneira gradativa e, além disso, sugeriu que as Universidades públicas e privadas iniciassem, similarmente, esta paralisação com o objetivo de evitar aglomerações. “Fiquei com medo de perder o semestre” conta Gabriela Hernandes Barbosa, 19 anos, aluna do curso de Pedagogia na Unifesp (Universidade Federal de São Paulo). “Mas, estamos falando de pessoas, seres humanos. Nós podemos recuperar o semestre, as pessoas não”. A interrupção das aulas presenciais motivou muitas universidades a aderirem ao modal online. Universidades como PUC (Pontifícia Universidade Católica) e USP (Universidade de São Paulo) estão prosseguindo com o ensino à distância. No entanto, esta adesão está provocando diversas dificuldades para os estudantes de baixa renda que não possuem dispositivos como computador, notebook, smartphone ou até mesmo acesso à rede de internet banda larga. “Grande parte dos meus colegas de classe utiliza os computadores da própria faculdade por não ter acesso à internet em casa. Seria muito excludente se a Unifesp optasse por dar continuidade ao semestre”, esclarece a estudante de pedagogia. “Não tenho computador em casa. Não podem exigir que o aluno tenha computador em casa, é um absurdo. Ainda mais em um momento como esse em que pessoas estão precisando do auxílio do governo para comer, para comprar alimento"
A estudante de pedagogia, residente da cidade de Guarulhos, mora com sua mãe Kely Cristina e com sua irmã Kauany Hernandes, de 10 anos. Kauany é aluna de escola pública e está no 5° ano do Ensino Fundamental. Desde o dia 27 de abril, quando as aulas estaduais reiniciaram, mas de maneira online, a menina vem apresentado à família dificuldades em lidar com a nova rotina. “A quantidade de conteúdo é impossível de acompanhar. Querem que a criança acompanhe a televisão, o aplicativo e o conteúdo que é passado pelo grupo no whatsapp ao mesmo tempo”, reclama Kely. O excesso de atividades escolares tem tomado não só a rotina da estudante, mas também de sua mãe e irmã. Numerosos são os dias em que a família termina os trabalhos e as atividades depois das nove ou dez horas da noite. A mãe das garotas trabalha como costureira e diz que apesar da pandemia está trabalhando com demanda normal. No entanto, ela revela que às vezes precisa interromper seu trabalho para ajudar a menina. “Hoje a professora passou vários exercícios no grupo do whatsapp e logo em seguida a aula da televisão começou. Tivemos que copiar as lições para que a Kauany pudesse assistir à aula. Tem sido complicado, mas estamos uma ajudando a outra”, completa Gabriela.
Além dessa defasagem provocada pela desorganização do ensino à distância, os alunos não estão recebendo aulas das disciplinas de Educação Física e Artística. “Eu acho triste que a educação artística esteja sendo deixada de lado. A educação física é mesma situação. Mas, nesse caso, as crianças acabam ficando sedentárias, pois estão das 13h às 17h sentadas e assistindo televisão sem praticar nenhum tipo de exercício físico”. Outra situação preocupante apresentada pela família foi a falta de participação dos demais alunos da turma de Kauany no grupo do whatsapp, aplicativo pelo qual a professora da classe envia os conteúdos diários e tira dúvidas. “No grupo são 33 alunos, mas apenas 8 são os que participam assiduamente das tarefas propostas. Sem falar daqueles que nem estão no grupo. Às vezes as crianças não tem celular ou o uso do celular dos pais é restrito. Ou, então, nem os pais sabem como encarar essa nova metodologia de ensino”
Quando perguntado sobre a relação dos alunos que não tem acesso aos dispositivos que lhes permitam o acompanhamento das aulas, o Secretário da Educação do Estado, Rossieli Soares afirmou: “Nenhum estudante será prejudicado ou ficará para trás”. Apesar de demonstrar empatia com alunos de baixa renda, é provável que não foi levado em consideração toda a problemática envolvida em aprovar um aluno para o próximo ano letivo sendo que este não demonstrou aprendizado sobre o conteúdo proposto.
A face dos bastidores
Para quem está na linha de frente da educação a situação atual também não é nada fácil. Professores, mediadores, diretores e demais colaboradores da comunidade de ensino enfrentam complicações não só no campo técnico, mas também, no campo social: diariamente esses funcionários recebem relatos de pais que contam da impossibilidade do filho assistir às aulas. “Os pais de um aluno que estuda no segundo ano do Ensino Médio relataram que o filho não pode assistir, pois trabalha no horário em que as aulas são transmitidas na televisão” conta a mediadora de uma escola estadual Irani C. Correia. “Outro casal falou que são evangélicos e não tem televisão nem internet.” As aulas da rede estadual podem ser acompanhadas pela televisão no canal TV Educação 2.3 ou 2.2 e também pelo aplicativo CMSP (Centro de Mídias do Estado de São Paulo), mas cada série possui um horário específico para as aulas. Para as famílias mais carentes que sofrem com a falta da merenda escolar que era servida pela instituição aos alunos, o Governo disponibilizou um benefício. No entanto, para ter acesso a este auxílio o aluno precisa possuir inscrição do CadÚnico (Cadastro Único).
Dessa maneira, muitas famílias deixam de receber por não possuírem este registro burocrático. “Eu defendo a educação, mas, sinceramente esse modelo não é o mais desejado. Acho que muitos desses alunos irão sumir da escola quando retornarmos. Muitos adoram estudar e estão fazendo e dando seu melhor, já outros que apesar de disponibilizarem de recursos não estão fazendo nada, pois sabem que não serão prejudicados. Os professores estão usando o diário digital para ter a noção dos alunos que entraram no aplicativo através de seu RA (Registro do Aluno), mas ainda não sabemos”, confessa Irani. “Mas, apesar de tudo nós estamos unindo esforços. Muitos professores estão montando grupos nas redes sociais, principalmente com os terceiros anos, revisando atividades de matemática e português, respectivamente. Nossa escola também disponibilizou um e-mail para possíveis dúvidas dos alunos”.
Prejuízo desigual
Apesar da rotina desordenada e confusa dos alunos com a suspensão das aulas presenciais, a data de aplicação do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) será mantida. Como justificativa, o Ministro da Educação Abraham Weintraub diz “Eu sei que o corona vírus atrapalha um pouco. Mas, atrapalha todo mundo. Como é uma competição, tá justo”. No entanto, a justiça afirmada por Weintraub não conduz com a realidade. Se as salas de aula das escolas particulares já são desiguais às salas das escolas públicas, a diferença é ainda maior nas salas das casas desses alunos. Ou seja, o aproveitamento e qualidade do ensino, consequentemente, serão distintos, logo, não há justiça. Pesquisas recentes realizadas pelo jornal NEXO apontam que apenas menos de 70% dos alunos de escolas estaduais possuem acesso aos computadores.
Além disso, esse estudo mostrou que entre os alunos que possuem acesso aos dispositivos, 35% compartilham com três ou mais pessoas. Ainda por cima, muitos jovens dividem o tempo de estudo com outros encargos: trabalho, cuidar de um irmão e também auxiliar nas tarefas domésticas. É o caso da estudante Vitória Manoela de Santana Almeida, 17, que conta que pelo excesso de tarefas externas ao estudo acaba por se desconcentrar. “É muito difícil estudar sozinha e manter o foco sem as aulas presenciais. Às vezes paro os estudos para cumprir uma tarefa que minha mãe pede e acabo me desconcentrando”. Aluna do terceiro ano do Ensino Médio em uma escola pública, Vitória iniciou os estudos no Cursinho Comunitário Cora Coralina, localizado no Bom Clima, bairro em Guarulhos. Assim como as demais instituições de ensino, o Cursinho também suspendeu as aulas, o que preocupa a estudante, uma vez em que não há indícios de uma possível alteração na data da prova. “Fico meio desesperada, começo a chorar por não estar evoluindo como os outros. O Governo precisa suspender o Enem”, protesta Vitória.
Os alunos que assistem às aulas pelo aplicativo, como é o caso da aluna, dispõem de um chat para depositar suas dúvidas sobre o conteúdo. Porém, vários estudantes dizem ser um método ineficaz, pois devido à existência de milhares de pessoas conectadas cria-se uma grande bagunça: muitos dos comentários não são questionamentos e as reais dúvidas não são lidas pelo professor que ministra a aula. Portanto, após o fim da aula muitos alunos permanecem confusos e cheios de incertezas sobre a matéria.
Visão Pedagógica
Em entrevista ao site UOL, Lucia Delagnello, diretora-presidente do CIEB (Centro de Inovação para a Educação Brasileira) disse que a maioria das secretarias estaduais de ensino do país não tem plataforma nem metodologia estabelecida para oferecer aulas remotas. A situação descrita por Delagnello é comprovada pela pedagoga Renata Bonifácio: “acredito que este método virtual não tenha eficácia, tanto no setor infantil, que é o setor que faço parte, tanto quanto no ensino fundamental e médio. É um processo que causa angústia não só no aluno, mas também nos professores e na equipe de gestão”, afirma Renata.
A pedagoga levanta a questão da desigualdade social como o maior impacto desse cenário de educação à distância, para ela a possibilidade da continuidade do ensino em casa depende da estrutura em que a família do aluno está inserida. “Os estudantes das escolas particulares têm o hábito de trabalhar em plataformas de sistema online, cada um tem o seu notebook em casa com rede de internet. É um contexto diferente dos alunos da educação pública, esses têm dois, três irmãos e apenas um computador em casa, ou quando tem. É complicado. Eu acredito que a desigualdade vai disparar se aprovações forem concedidas a alunos que não puderam aproveitar o ano letivo. Deve ser repensada a necessidade do prosseguimento dos 200 dias letivos”.
Muitos especialistas do campo educacional, tais como o educador Mozart Neves Ramos, afirmam que as escolas da rede pública apresentam modelos arcaicos, especificamente, modelos do século XIX, segundo a tese do escritor. Essa ideia se verifica na fala de Renata: “Infelizmente, nós não estamos preparados para a educação à distância, somos ainda acostumados com giz, lousa e professor falando, é isso que tem funcionado efetivamente na sala de aula”.