O aborto é um procedimento muito comum na vida das mulheres, sejam elas brasileiras, brancas, pretas, pardas, ricas ou pobres. As únicas diferenças que existem se encontram entre o método clandestino e consequentemente perigoso, ou sancionado e seguro. A interrupção ilegal provoca riscos à vida mulher, podendo levar até à morte; enquanto a sancionada é segura, já que passa por procedimentos médicos confiáveis. Sua legalização é de extrema importância tanto em âmbitos da saúde quanto em questões do corpo da mulher. Isso pode ser evidenciado nos 63 países em que já o descriminalizaram, como a Argentina, Islândia e Irlanda.
Primeiramente, o aborto indica simplesmente a interrupção de uma gestação de forma espontânea ou de maneira voluntária. O primeiro caso é mais comum que ocorra no início da gravidez, com uma chance de 10 a 25%. Mas ele se divide em dois períodos: o precoce, com menos de 13 semanas e o tardio, de 13 a 22 semanas podendo ocorrer por não ter tido um desenvolvimento adequado do feto ou pela mulher ter a idade muito avançada. Já o segundo, pode ser realizado por via de medicamentos. Nesse caso, não é necessário acompanhamento de um profissional, como também pode ser feito por procedimentos médicos como a Aspiração Manual Intra-Uterina (AMIU) e a curetagem, uma raspagem da parede intrauterina. Os processos voluntários citados são os considerados seguros pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
Por meio de uma análise a respeito do ranking dos continentes que possuem as legislações mais conservadoras e punitivas em relação ao aborto, a América Latina encontra-se em segundo lugar, abaixo apenas da África. Devido a isso, conforme o regulamento brasileiro, a interrupção considerada voluntária só é permitida quando a gestante enfrenta risco de vida, gravidez provocada por estupro e também quando o feto é anencéfalo, ou seja, não tem cérebro. Em qualquer outro caso, é proibido o abortamento levando à reclusão de até três anos e podendo ser investigada até oito anos depois da realização.
Diante do regimento, em entrevista ao El País, Debora Diniz, pesquisadora da organização Anis Instituto de Bioética e professora da Universidade de Brasília (UNB) acredita que o Código Penal é inconstitucional. “O código penal de 1940 manda prender mulheres que fizeram o aborto. A Constituição é de 1988 e, portanto, posterior a 1940. Uma leitura do Código Penal pela Constituição diz que eu não posso prender mulheres se é uma necessidade de saúde, se o aborto é parte da dignidade da vida das mulheres ao tomar essa decisão. Então, uma leitura da Constituição sobre o Código Penal diz que ele é inconstitucional”, afirma a professora. Isso é fato, todos os cidadãos têm inúmeros direitos fundamentais, como o direito à vida, saúde e igualdade, mas que deixam de ser garantidos quando o aborto é tratado como crime.
Mesmo nos casos em que a interrupção é legal no Brasil, é difícil de ser realizada. De acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), em 2011, 67,4% de cidadãs que sofreram estupro não conseguiram fazer o procedimento no serviço de aborto da rede pública. As que mantiveram a necessidade de seguir com a decisão precisaram optar pela insegurança da clandestinidade. Conforme informado ao HuffPost pela Dra. Maria de Fátima Marinho, diretora do Departamento de Vigilância de Doenças e Agravos não Transmissíveis, 4262 adolescentes de 10 a 19 anos foram abusadas sexualmente e tiveram o consequente nascimento do feto entre 2011 e 2016. "Há mais de 400 mulheres tendo bebês anencéfalos por ano, mesmo tendo direito ao aborto legal", comenta. Isso ocorre por falta de informação, recusa de atendimento, precariedade no sistema de saúde pública e dificuldade em denunciar o estupro, esse, na maioria das vezes, é cometido por algum familiar.
Em março de 2017, a Anis e o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) convocaram uma ação ao Supremo Tribunal Federal (STF) referente à legalização do aborto até a 12ª semana, como é atualmente na Espanha, Finlândia e Dinamarca. "Declare a não-recepção parcial dos artigos 124 e 126 do Código Penal, para excluir do seu âmbito de incidência a interrupção da gestação induzida e voluntária realizada nas primeiras doze semanas", era o que a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) pedia ao STF. Esse período destacado foi escolhido justamente pelo fato de a Organização Mundial da Saúde (OMS) ressaltar que o risco de complicações é de apenas 0,05%. No entanto, não foi possível que essa medida se concretizasse, mantendo a criminalização de um direito. Uma violência à mulher.
Vizinha ao Brasil, a Argentina, em 2018, havia aprovado a lei que validava o aborto até a 14ª semana de gestação obrigando o Estado a pagar todos os gastos da realização. Porém não foi aprovada pelo Senado. “Todos somos pró-aborto. Uns pró-aborto clandestino; nós, pró-aborto legal”, foi uma das frases encontradas nas ruas enquanto não obtiveram resposta do Legislativo.
Diferentemente desses dois países, há inúmeros outros que já tornaram a prática do aborto legal, como todos os Estados da Europa, exceto Malta e Polônia. Nessa perspectiva, em 1935, a Islândia foi a pioneira do Ocidente a permitir que isso pudesse acontecer. Atualmente, é válido lá que a mulher tem como direito sua liberdade individual, permitindo que a prática possa ser feita até 16 semanas de gestação, como em casos de falta de renda ou em razão das condições mentais da mãe.
A legalização mais recente foi da Irlanda em 2018. O governo aprovou um referendo legalizando o aborto mesmo com 78% de sua população seguir o catolicismo. No momento, mulheres até a 12ª semana que apresentem algum risco de vida ou em casos de feto anencéfalo até a 23ª semana podem fazer a interrupção da gravidez indesejada. Percebe-se que o viés religioso foi deixado de lado para que não interferisse diretamente na escolha das mulheres, sendo elas religiosas ou não.
O primeiro-ministro irlandês, Taoiseach Leo Varadkar, afirma que a descriminalização foi um grande ato democrático, visto que conseguiram quebrar barreiras ideológicas. Em contrapartida, em muitos países, a questão religiosa se torna um obstáculo na legalização do aborto até mesmo nos que são laicos segundo a Constituição, como é o caso do Brasil. A doutrina acaba por influenciar certas decisões políticas e morais, afetando todos os brasileiros. Voltado para a Igreja, o padre Júlio Renato Lancellotti, da Pastoral de Rua de São Paulo, crê que o aborto se enquadra no mandamento “não matarás”, ou seja, que as mulheres não devem abortar e sim, prezar pela vida do feto. Contudo, em 2015, o Papa Francisco determinou o direito do perdão às mulheres que abortam.
“Minha primeira visão é a pessoal de que eu nunca faria o aborto, pelo fato de ter um ponto de vista religioso. Isso influencia, porque vejo na Bíblia a defesa pela vida, então não tem como não levar para esse lado. Mas sei que isso não pode interferir no Estado. Afinal, ele é laico. Dessa forma, os deputados, por exemplo, não podem justificar voto falando que é porque Deus quis”, enfatizou, em entrevista, Giovanna Marie que faz parte do Anjo Guardião, um grupo de ideologias católicas. Além disso, diz “acredito que muitas pessoas o fazem de qualquer forma, mas muitas são barradas pela lei, porque tem o filho e depois nem dão atenção necessária a ele, deixam-no largado por aí”.
Rafaela Carrare, estudante do 3º ano do Ensino Médio em preparação para enfrentar os vestibulares e conseguir uma vaga em psicologia também analisa por essa via. “Muitas pessoas entendem que se o aborto for legalizado, vão deixar de se prevenir e passarão a realizá-lo como um método contraceptivo para a interrupção da gestação. Mas ele é apenas uma alternativa usada em casos que a mulher foi abusada ou para quando anticoncepcionais e preservativos falham, já que não são totalmente eficazes. Todas as mulheres possuem o direito de decidir sobre seu corpo e seu futuro. Com isso, a responsabilidade de escolher fazer o aborto ou não está nas mãos delas a partir dos seus ideais e não de valores exteriores como uma crença ou um juízo de valor de outra pessoa.”, declara a estudante.
Nesse contexto, seria fundamental a legalização do aborto. Afinal, a interrupção da gestação é uma realidade comum mesmo sendo proibida. Conforme a Pesquisa Nacional do Aborto (PNA), uma a cada cinco mulheres até 40 anos a realizam no Brasil. Em 2016, a PNA trouxe dados também referentes ao perfil de quem faz o procedimento. Com isso, foi possível observar que 88% declararam ter religião e que são cidadãs de diferentes grupos étnicos, sociais e níveis educacionais, a maioria com filhos. É mais frequente ainda para indígenas e negras residentes do Centro-Oeste, Norte e Nordeste com baixo acesso à escolaridade. Estima-se ainda, que, pelo menos, um aborto já foi feito no Brasil por 7,4 milhões de mulheres de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Segundo estudo feito pelo Guttmacher Institute, organização de pesquisa sobre direitos reprodutivos, há menos número de interrupções em locais onde a lei é mais flexível. Na França, em que é legalizado, o número caiu em 18% do total de grávidas. Fazendo um comparativo de uma década onde o aborto é ratificado, a taxa de interrupção caiu de 46 para 27 a cada mil mulheres. Uma publicação feita pela Folha de São Paulo também confirma que a descriminalização diminuiria drasticamente o número de interrupções além de tornar quase zero as mortes e sequelas em decorrência do aborto clandestino. Afinal, impor uma lei não vai fazer com que deixem de realizar tal prática e isso só vai colocá-las em risco.
A interrupção da gravidez deve ser tratada como uma questão de saúde pública. A mulher precisa de cuidados e auxílios, principalmente quando se refere a um fator que possui enorme impacto em sua vida. A criminalização traz inúmeros prejuízos. Começando pelo número de óbitos por abortamento. Como informado pelo próprio Ministério da Saúde, o aborto se encontra em 5º lugar de morte materna no Estado brasileiro. O Instituto Guttmacher também levantou dados indicando que 22 mil mulheres são mortas anualmente no mundo todo devido a métodos decorrentes da ilegalidade.
Rafaela Carrare, em entrevista, alega ser perigoso realizar a interrupção clandestina e justifica que esse é um dos motivos por que considera necessária a legitimação. “Deve ser legalizado por ser uma obrigação do Estado garantir uma segurança maior às mulheres, assegurando a vida e a dignidade de todas. As que são pobres não têm dinheiro para ir a uma clínica, recorrem a procedimentos mais vulneráveis que são degradantes ao corpo e muitas acabam morrendo. Assim, tornaria possível o direito à saúde”, comenta. Pelo fato do aborto ser ilegal, mulheres precisam utilizar o sistema proibido e arriscado. Por conseguinte, 70 mil delas morrem por ocorrer complicações conforme dados das Nações Unidas.
Sob esse viés, pode-se observar que mulheres com baixa condição de renda, sem conhecimentos educacionais, pretas, pardas e indígenas são as que encaram as técnicas precárias. Dessa forma, submetem-se a elevados riscos de lesões, mutilações e óbito. Por outro lado, têm-se as mulheres ricas, de alta escolaridade e que vão procurar métodos mais seguros para que seja feito o aborto. Essa análise deixa visível o racismo institucional. Inclusive, a Dra. Maria de Fátima Marinho comprova isso com os dados de que 559 mortes são de mulheres brancas e 1.079 de mulheres negras.
Além disso, a interrupção da gestação está totalmente relacionada com o viés feminista. “A criminalização do aborto é uma posição patriarcal que o governo toma, pois impõe uma maternidade à mulher retirando seu direito de escolha. Isso deve ser considerado feminicídio de Estado ao negar o direito das mulheres sobre si mesma”, ressalta Rafaela. O próprio Ministro do STF Luís Roberto Barroso declarou também a respeito dos direitos fundamentais. “A condenação é incompatível com os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, que não pode ser obrigada pelo Estado a manter uma gestação indesejada; a autonomia da mulher, que deve conservar o direito de fazer suas escolhas existenciais; a integridade física e psíquica da gestante, que é quem sofre, no seu corpo e no seu psiquismo, os efeitos da gravidez; e a igualdade, já que homens não engravidam e, portanto, a equiparação plena de gênero depende de se respeitar a vontade da mulher.”, afirmou.
O verde e o roxo se manterão presentes aqui na América Latina e no restante do mundo entre as mulheres, clamando pelo direito de decisão e de saúde para um aborto seguro, gratuito e legal. Importante lembrar também que a prática da interrupção envolve não somente a vida do feto, mas, principalmente, da mulher, já que ela pode sofrer graves consequências em manter uma gravidez indesejada.