Catadores movimentam mercado invisível bilionário da reciclagem

Com uma rotina diária cansativa e estressante catadores de rua contribuem com cerca de 90% da reciclagem no Brasil
por
Laura Boechat
Maria Clara Alcântara
|
15/06/2023 - 12h

Por Laura Boechat (texto) e Maria Clara Alcântara (audiovisual)

 

Em um sol tímido que começa a surgir perto das oito da manhã, a movimentação na avenida mais famosa da cidade de São Paulo, a "Paulista", já dá seus primeiros indícios de mais um dia corrido – como todos os outros na região. A longa rua, que ostenta bancos bilionários, museus famosos e lojas de roupas de três andares, faz circular pelas calçadas executivos engravatados, turistas curiosos, vendedores ambulantes e muitos outros tipos dentre os 1.500.000 transeuntes que por lá caminham diariamente. Mas não só esses. 

A Avenida Paulista é também o cenário do cotidiano de Joaquim. Aos 66 anos, ele é catador de materiais recicláveis. Morador da Zona Leste e cristão fiel, ele circula, como muitos outros, pela região da avenida de 9h00min às 21h00min, recolhendo o que encontra pelas calçadas, restaurantes e lixeiras. Com seu carrinho elétrico, Joaquim procura desde papelão a latinhas e revistas. "O papelão está meio defasado, tem épocas que sobe e desce, agora tá baixo. Mas nós estamos aí, na luta", comenta Joaquim, com a perseverança que ele diz ser entregue por Deus.

A história de Joaquim como catador de recicláveis começou cedo. Já aos 14 anos, ele separava latinhas para vender. "Naquele tempo, se você pedia dinheiro pros pais, eles não davam", diz bem-humorado enquanto protege os olhos do sol das 3 da tarde na Avenida Paulista, em frente ao Juizado Especial Federal. "Fui trabalhar de varredor de rua e não deu certo. Eu acho que já tô com sangue na veia de reciclagem", conta Joaquim em meio a risadas, marcado pelo tempo de seus 50 anos como catador.

Hoje, Joaquim não precisa mais separar latinhas pela falta de dinheiro dos pais, mas são elas que ainda mantêm sua casa: "O meu carrinho dá sustento para minha família. Eu e minha esposa compramos os meus remédios, porque com o tempo vêm as coisas. Eu tenho uma hérnia, varizes, tudo por conta do meu trabalho". 

Pai de família, hoje, ele trabalha com uma associação chamada Nova Glicério, na qual operam catadores e triadores, e que viabilizou a conquista do tão querido carrinho elétrico através da organização Pimp My Carroça. "Pra mim, foi uma benção. Esse carrinho tem buzina, tem luz noturna, seta, carregador de celular…. Pega até 400kgs. Pra mim é uma maravilha, eu não pego mais peso. Facilita muito", explica, exibindo a buzina posicionada no guidão do carrinho, além dos adesivos na traseira para sinalizá-lo nos túneis que compõem o cenário do seu dia a dia.

"Essa aí é a logo deles!", mostra Joaquim enquanto aponta para o adesivo colado em seu carrinho com o nome Pimp My Carroça. Segundo o site, a ONG se descreve como "um movimento que atua desde 2012 para tirar os catadores de materiais recicláveis da invisibilidade – e aumentar sua renda – por meio da arte, sensibilização, tecnologia e participação coletiva". Uma das ações para alcançar esse objetivo é o projeto Carroça do Futuro – que foi por onde Joaquim conquistou sua carroça elétrica. 

As carroças elétricas possuem velocidade máxima de 6 km/h, motores elétricos com funções de ré e itens de segurança como os descritos por Joaquim. O primeiro projeto de carroça elétrica surgiu em 2021. Atualmente, a meta é expandir o projeto através de um fundo coletivo com parceiros e aliados.

  

 

Se a carrocinha elétrica que suporta 400 quilos ajuda o trabalho de Joaquim, o mesmo não se aplica à maior parte dos catadores, que não têm a facilidade impulsionada pela tecnologia. Márcio, de 44 anos, também é catador. Morador de Bom Retiro, Márcio circula pela região de Perdizes todos os dias. Com um carrinho manual e bem menor que o de Joaquim, Márcio nos explica que, por não ter uma carroça maior, fica difícil juntar muito volume de material. "Eu vou juntando lá perto do terminal até umas nove da noite. Guardo por uns dez dias em casa. Quando tem uma quantidade maior, o pessoal do ferro-velho lá de Bom Retiro, onde eu moro, vem com o caminhãozinho buscar", conta, dando um gole de água que acabou de pedir em uma mecânica localizada na rua Bartira.

Mesmo com a dificuldade por conta do tamanho do carrinho, Márcio aponta que, para a região em que ele circula, é mais prático: "Ele é pequeno, mas é melhor para andar pela região aqui, que tem muito morro".

Diferente de Joaquim, que trabalha por doze horas, Márcio costuma chegar às 17h30min em Perdizes, deixando a região por volta das 21h00min. "É que é a hora que o pessoal está colocando o lixo dos prédios para fora, né. É o horário que a gente começa a trabalhar, e tem que ir antes do caminhão do lixo chegar. Daqui a pouco ele passa", explica Márcio.

Catou. E depois?

Da latinha de refrigerante até o papelão do vídeo-game novo, colhido por um trabalhador filiado à associação, como Joaquim, ou de maneira autônoma, como Márcio, o material coletado precisa de um destino final.

O primeiro passo é a triagem – como ocorre na associação Nova Glicério, onde participa Joaquim. Todo o material é separado em categorias e analisado para definir se está apto à reciclagem. É também na triagem que ocorre a pesagem, o enfardamento e a estocagem do material. Após a seleção, os materiais são vendidos para a indústria como matéria-prima para a confecção de novos artigos. "Tudo o que a gente cata vira outras coisas. Um pedaço de ferro pode ajudar na composição de uma geladeira, por exemplo", explica Joaquim.

Apesar de Joaquim e Márcio venderem os materiais para a reciclagem, esse, infelizmente, não é o único destino dos materiais descartados no Brasil. Chamados de Resíduos Sólidos Urbanos, grande parte dos RSU ainda são encaminhados para destinação inadequada em todas as regiões do País. Segundo o Panorama de Resíduos Sólidos no Brasil de 2022, da Abrelpe, 39% dos resíduos coletados ainda vão parar em lixões e aterros controlados. Isso representa um total de 29,7 milhões de toneladas com destinação inadequada.

 

 

 

Segundo o doutor em saneamento Luis Hamilton Garbossa em seu livro "Gestão de resíduos: sólidos, líquidos e atmosféricos", o aterro sanitário é considerado atualmente – dentre as três opções tratadas – a melhor maneira de tratar os resíduos sólidos. Os lixões consistem em jogar todo o resíduo coletado em um local a céu aberto, o que acaba por atrair ratos e urubus, além de prejudicar o solo. Já os aterros controlados, apesar de menos tóxicos que a primeira opção, também não se mostram como a melhor opção, uma vez que não ocorre a impermeabilização do solo.

Diferente disso, o aterro sanitário segue uma série de condutas para que o descarte não seja prejudicial à saúde da população do entorno, nem dos envolvidos na cadeia do mercado do lixo. Essas regras envolvem tratamento de chorume, a coleta de biogás e a impermeabilização do solo. Dessa forma, a melhor maneira de descarte dos RSU são os aterros sanitários.

A necessidade da função de catador

Para Joaquim, sem a função de catador, São Paulo se tornaria um caos. "É muito importante ter um lugar para descartar os recicláveis, que não são lixo. Eu lembro que em 1970 a turma não ligava para coleta de materiais recicláveis, mas aí começou os efeitos do aquecimento global e o povo começou a se preocupar né", diz ele.

E ele tem razão: segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), em 2017, os catadores já eram responsáveis por quase 90% do lixo reciclado no Brasil. Mesmo com o número surpreendente, os catadores ainda enfrentam diariamente preconceitos, além de um processo de invisibilização e exclusão.

Márcio acredita que falta respeito por boa parte da população. "Você está andando com carrinho na rua ou carroça e o pessoal passa de carro e buzina, te xinga. Eles acham que você tá atrapalhando o trânsito", lamenta. "Mas isso é falta de entender a realidade. É que nem uma garrafa pet, tá aí na chuva e desce pro bueiro, causando um monte de problema. Se não fosse por nós, isso aconteceria ainda mais", explica ele.

Apesar do preconceito direcionado aos catadores e da má remuneração, a outra ponta da pirâmide parece se dar bem. Segundo dados do Panorama de Resíduos Sólidos no Brasil, da Abrelpe, o mercado de limpeza urbana movimentou, em 2021, R$ 29,9 bilhões, 3,0% a mais do que o montante verificado em 2020. A região Sudeste apresentou variação acima da média nacional, com 3,2%.

Como suporte para dignificar a função dos catadores, Joaquim propõe que o assunto seja vociferado: "essa é uma forma de valorizar o trabalho do catador, mostrando pros outros a importância dele. Acabar com a visão de que o catador é um coitado – o catador é um profissional que gera empregos, gera reciclagem".