No dia 2 de fevereiro de 2021, logo pela manhã, os paulistanos tomaram conhecimento de mais uma ação de Júlio Renato Lancellotti, mais conhecido como Padre Júlio Lancellotti. Na ocasião, a prefeitura comandada pela gestão de Bruno Covas (PSDB), tinha instalado pedras sob dois viadutos, localizados na Avenida Salim Farah Maluf, no dia anterior, para impedir pessoas que já faziam daquele espaço de suas casas, ficassem por lá. Assim que soube do ocorrido, o Padre não hesitou e foi até os viadutos, com uma marreta, quebrá-las.
Essa e outras ações executadas pelo religioso, foram, aos poucos, sendo reconhecidas para além dos militantes de direitos humanos e religiosos. Na medida que a juventude a partir das redes sociais, começou a seguir suas caminhadas, Lancellotti se tornou uma referência do assunto. Porém, o trabalho que faz pelos direitos humanos começou muito antes do advento da internet e até mesmo de se ordenar padre. “Quando tinha algum maltrato em uma Febem [Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor], não se chamava Casa Nova Vida, onde tinha as crianças menores, a do Tatuapé, por exemplo, em algumas unidades o tratamento era na base da porrada, ele atuava, levava advogado, criava caso, ali a gente começou a ter notícias dessa figura”, é o que conta Silvio Mieli, jornalista e professor de Jornalismo da PUC-SP. Depois que se tornou padre, aos 37 anos, realizando projetos na Pastoral Carcerária, Pastoral do Menor e na Casa Vida, Mieli diz que virou um “sinônimo de acolhimento”, diante das violações de direitos humanos. “Morador de rua maltratado, epidemia de aids se alastrando e ninguém cuidava – ‘deixa eles lá para morrer e mofar’ – Pe. Júlio atuava".
Ao longo da conversa com a AGEMT, Mieli relatou três momentos que se aproximou de Lancellotti: na Casa Vida, na Pastoral do Povo da Rua e nas manifestações de 2013. A reportagem conversou também com Renato Levi, professor de jornalismo da PUC-SP e da USP. Confira também o podcast sobre a matéria no link.
CASA VIDA
O primeiro contato que Mieli teve com o religioso, foi entre os anos de 1996, 1997 até 2000, quando estava realizando um projeto de prevenção à AIDS para a população semialfabetizada ou analfabeta, voltado para a periferia. O jornalista desenvolveu um aplicativo multimídia, com o intuito de conscientizar seus usuários sobre a prevenção ao HIV, capaz de dialogar com uma linguagem familiar para as pessoas. “Ia rodar em computadores, distribuídos em pontos estratégicos da periferia, um telecentro, uma igreja, um posto de saúde, uma praça”. No mesmo período, Pe. Júlio realizava um trabalho, junto à Pastoral Carcerária, de combate ao vírus HIV dentro das penitenciárias paulistas. “Aqueles grupos midiáticos, principalmente do rádio na época, que tratavam os militantes dos direitos humanos daquele jeito delicado, ‘lá vêm a turma dos direitos humanos’, ‘bandido bom é bandido morto’, começaram a visar o padre Júlio. Mesmo quem não militava nessa área, diretamente ou indiretamente, todo mundo sabia quem era o Padre Júlio”, conta Mieli.
Ao perguntar aos dominicanos, que assim como o jornalista, faziam parte de um grupo solidário, se o Padre tinha um projeto específico ligado a HIV/AIDS, um deles respondeu: “Ele tem, lá na zona leste. Me deram o telefone dele e foi aí que ele [Pe. Júlio] falou: “Eu não vou te adiantar nada, vem aqui e veja”. E foi assim que passou a conhecer a Casa Vida. Criada em 1991, o projeto tinha como objetivo, criar um ambiente familiar e menos sofrido para amenizar a realidade de crianças e adolescentes acometidos pelo vírus HIV, muitos destes, órfãos dos pais, que vieram à óbito devido a evolução do vírus e, também, rejeitados por seus avós. Com data e hora marcada, Mieli contou sua primeira impressão do espaço. “Eu fui lá no sábado e cheguei antes dele [Pe. Júlio]. Era uma casa, não muito grande, devia ter uns 5 ou 6 quartos e cada quarto tinha duas crianças. De repente apareceram essas crianças limpinhas, tinham acabado de comer, perguntaram quem eu era e começaram a mexer no equipamento. Algumas eram muito magras, já estavam muito doentes, e outras não, estavam melhores”.
Para o jornalista, o projeto era muito mais do que um simples orfanato, “parecia que aquelas crianças eram irmãos e que tinha umas tias que cuidavam lá”. Dentre as “tias” que trabalhavam na Casa Vida, havia médicos e psicólogos, além de religiosos que apoiavam a iniciativa. Durante a conversa com Lancellotti, ele explicou o principal objetivo do projeto, “tirar as crianças o medo de morrer”. “Tinha 11 crianças, de repente uma morria, então elas falavam: ai meu deus, morreu tal pessoa, o que vai ser da gente?!”, relata o jornalista. Era como “dar uma sobrevida para aquelas que tinham condição de sobreviver, que não eram muitas, isso era muito triste. Você acolheria uma criança que morreria pouco tempo depois, e ao mesmo tempo dar uma vida digna para essas crianças, até o fim, que já estavam muito doentes”, completa.
Ao mesmo tempo que o projeto ganhou uma visibilidade muito grande, Mieli relata que a Casa enfrentava dificuldades com a vizinhança, muitas vezes agredindo verbalmente o próprio Pe. Júlio e, até mesmo, jogando objetos em sua direção. Porém, ainda segundo ele, a maneira como o religioso contornava a situação faz jus ao reconhecimento que tem frente às lutas sociais que mobiliza. “Ele ia lá falar, daquele jeitão dele. A pessoa via aquela figura, querendo conversar, sem ofender ninguém, acabava conversando. Se não mudava a opinião da pessoa, pelo menos passava uma confiança e dizia: Vêm aqui, venha contar uma história para as crianças”.
PASTORAL DO POVO DA RUA
Terminado o projeto para a prevenção contra o HIV, Mieli estava no evento Agenda Latino Americana, em 2000, para escolher, junto aos organizadores, as melhores iniciativas sociais para homenageá-las. O professor se recorda que o Grupo Solidário São Domingos e outras pessoas da militância pelos direitos humanos, sugeriram o Pe. Júlio, como um possível homenageado. “Na época eu falei: Ah, mas o Pe. Júlio, a Casa Vida e tal?!, mas aí alguém falou: Não, eu estou sugerindo pelo modo como ele está focado com o trabalho da Pastoral dos Moradores de Rua [Pastoral do Povo da Rua], como ele está subsidiando esse trabalho lá na zona Leste. Como a Igreja de São Miguel está virando, um pouco, um núcleo de concentração dessa militância a favor dos moradores de rua”.
Depois de descobrir mais uma frente dentro da militância pelos direitos humanos do padre, ele se dirigiu ao próprio e logo perguntou: “Mas o senhor abandonou a questão da AIDS e está nos moradores de rua?”. O religioso explicou que, dentre os diversos temas de direitos humanos, todos em que atua estão ligados entre si. “É um problema só. Eu quando ando pela rua, eu trato dos que são os potenciais encarcerados, dos que vão acabar pegando o vírus HIV/AIDS e desses grupos de pessoas fantásticas que são os andarilhos, as pessoas que merecem ser tratadas com dignidade e não devem ser obrigados a sair da rua”.
Coordenada por Lancellotti, a Pastoral do Povo da Rua, é uma das várias pastorais ligadas a Arquidiocese de São Paulo. Com sede própria desde 1997, a Casa de Oração do Povo da Rua, construída após o então Cardeal de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns, receber um prêmio concedido pela organização japonesa, Fundação Niwano, tem como objetivo fornecer um auxílio social a população em situação de rua, disponibilizando itens básicos de saúde, uma alimentação regular, além de possibilitar a convivência entre religiosos e participantes da Pastoral com eles.
Na Paróquia São Miguel Arcanjo, onde Lancellotti é pároco, aos olhos do professor, “ter um ponto de referência e de acolhida, para ser ouvido ou para pegar um prato de comida”, para as pessoas em situação de rua, é “ter uma porta aberta”. São frequentes as postagens nas redes sociais do Padre sobre seus trabalhos com a população em situação de rua, sempre documentando as enormes filas de pontos de entrega de alimentos, mantimentos e cuidados com a saúde deles. Com o aumento do número de óbitos e a hospitalização da população em situação de rua, Mieli se recorda do trabalho do Padre no atual momento. “Hospitalizar moradores de rua que estão doentes. Ele vai lá, liga para o SAMU, vai ele dentro da ambulância e fica no hospital. À meia noite, em uma noite fria, ele faz isso. Quem que de nós faria isso?!, talvez a gente deva começar a fazer”, conta.
O jornalista se lembra de outro momento que chamou sua atenção, dentro da militância do Padre pelos moradores em situação de rua, “quando ele começou a defender a população trans”. Para ele, há uma imagem que o marcou muito, quando o Padre perguntou a uma moradora de rua, trans, se poderia lavar o seu pé. No momento, Mieli interpretou a imagem do rosto dela com um sentido duplo: “não Padre, eu não sou digna para você fazer isso”, esse foi o primeiro impulso dela. Mas ao mesmo tempo, relata que a mulher quis dizer algo como, “você não existe”, como um ser quase que perfeito, onde ela jamais imaginaria que alguém poderia fazer aquilo.
MANIFESTAÇÕES DE 2013
Quando as manifestações de 2013 começaram a crescer e, por consequência, a repressão policial começou a ser maior, Mieli, que estava presente na primeira manifestação, conta que viu algo inesperado naquele momento, o Pe. Júlio. “O Pe. Júlio me aparece lá e fica no meio da manifestação, com a máscara, dando o braço para os caras”. No instante que o jornalista foi tentar conversar com o Padre, que estava na linha de frente junto à Black Blocs, a polícia começou a dispersar os manifestantes com truculência, “quando eu tentei falar com ele era tarde demais, por que a polícia já veio e foi porrada para tudo que é lado”, relata.
Duas semanas depois, eles se encontraram na PUC-SP. “Padre Júlio, mas que maravilha, o senhor estava lá com os Black Blocs”, lembra o professor. Quando se sentaram para conversar e tomar um café, Lancellotti disse que “Jesus era um Black Bloc”. Depois disso, se recorda Mieli, o Padre começou a narrar a figura de Jesus Cristo de um livro que leu, Zelotas, A vida e a época de Jesus de Nazareth. “Ele começa me falar umas coisas que eu não sabia, que lá no tempo da Palestina, tinha uns Black Blocs que chamavam Zelotas, que era a turma que Jesus andava”, lembra.
“Em poucas palavras, ele começou a me descrever uma figura, que era Jesus Cristo, que se aproximava muito de um militante revolucionário contemporâneo. Quando o Pe. Júlio fala de Jesus, o corpo dele começa a mudar, ele fala de um Che Guevara, ele fala de uma coisa revolucionária, ele fala de alguém que deixa a emoção se apossar do corpo”. Quando perguntou para o Padre se o motivo dele ter ido nas manifestações e se juntado aos Black Blocs foi esse, respondeu crítico: “É exatamente por causa disso. Ser cristão hoje, é praticar essa relação fé e política desse modo, com essa veemência, dessa forma”.
“BLACK BLOC DE DEUS”
Pouco depois das manifestações de 2013, Mieli, junto à Renato Levi, professor de jornalismo da PUC-SP e da USP, que já estavam estudando as relações entre religião e política há algum tempo, ao lado do Núcleo Perseu Abramo, do departamento de jornalismo da PUC, decidiram produzir um documentário sobre o Padre Júlio. Levi conta que, para não fazer mais um documentário sobre o religioso, sendo o protagonista do filme, priorizaram uma discussão, segundo Levi, que está por trás dos trabalhos do Padre, “a Igreja como um ator social importante nas lutas pelos direitos humanos, pela dignidade, pela democracia”.
Para além da relação entre política e religião, o documentário pretende abordar a relação do Padre com as mídias sociais. Segundo Mieli e Levi, o religioso “sacou” muito bem o papel das mídias sociais na divulgação de seus trabalhos e para a denúncia em relação às violações de direitos humanos nas mais variadas frentes que atua. Para Mieli, “ao contrário de se fechar para os meios de comunicação contemporâneo, ele se abriu totalmente”. “Que população aparece quando falam do Pe. Júlio? Ele é meio que transparente, o que aparece é o outro, você vê a população de rua, ele é um representante desses caras, ele chegou ao ponto de falar em nomes deles”, diz Mieli, sobre sua participação e o intuito do Padre ao usufruir das redes sociais.
Já para Levi, além de representar uma população abandonada, que é a população em situação de rua, Pe. Júlio virou uma celebridade em detrimento da “hyperização” de sua figura. “É importante que ele seja visível, porque dá visibilidade a luta dele, da visibilidade as pessoas em situação de rua, mas por outro lado, ele se torna mais uma celebridade, mais um influenciador”, relata.
Indagado sobre a importância da figura do Pe. Júlio frente a questões de direitos humanos e o papel que ele tem em difundir essas lutas, Mieli aponta uma qualidade do Padre que poucos possuem, “assumir uma qualidade daqueles que sofrem”. “De tanto conviver com as pessoas desqualificadas, ele acabou assumindo isso. Ele tem prazer em ser o menor entre os menores, o que é uma coisa muito rara no ser humano”. E ressalta dizendo, “de repente você [Padre Júlio]: ‘não, eu vou lá no meio dos que estão sem nada e vamos apanhar junto com ele e vamos lá. É isso o cristianismo, “Amai ao próximo como a ti mesmo” é isso. Se coloca no lugar do outro, dois minutinhos, para ver o que é bom para tosse, ao invés de ficar fazendo atos de caridade”.