‘Brasilidade Fantástica’ e a falta de representatividade brasileira no Baile da Vogue de 2022.

Como o "Complexo de Vira-lata" influencia os diversos âmbitos sociais, inclusive o mundo da moda.
por
Isadora Verardo Taveira
Sophia G. Dolores
|
07/06/2022 - 12h

 

Foto Montagem
Foto montagem com arquivos publicados pelo site Vogue. (Reprodução: Sophia G. Dolores)

 

 

           No dia 02/05/2022, estruturado no tema de “Brasilidade Fantástica” e na semana de arte moderna de 1922, movimento que buscou uma arte efetivamente brasileira, aconteceu o Baile da Vogue no Rio de Janeiro. Em meio a trajes luxuosos e produções exuberantes, o evento contou com a presença de artistas e digital influencers da atualidade, e na maioria deles, era notório algo em comum: a falta de representatividade da cultura e da identidade brasileira. 

            É importante lembrar que a indústria cultural, e principalmente, a indústria da moda vende constantemente a imagem do povo carnavalesco para o mundo, mas o Brasil não é somente representado por carnaval, samba e Rio de Janeiro. Em entrevista para o “Nós, Mulheres da Periferia”, a estilista brasileira Seanny Oliveira conta que a decisão do tema foi importante para uma representação brasileira ainda maior, porém, acredita que faltou diversidade cultural. “Eu penso que a Vogue deve conhecer as artistas [indígenas, quilombolas e ribeirinhas] que produzem moda. Não precisamos de representatividade estrangeira, existe também no Brasil muita gente que é capacitada”. O que faz então, os artistas e influencers buscarem a representação vinda de fora?

A escolha pela moda estrangeira

            Bianca Andrade, mais conhecida como “Boca Rosa” pela internet, foi uma das centenas de artistas presentes no Baile em 2022 que apostou num estilista estrangeiro. “Escolhi esse vestido surrealista da Loewe para trazer a ‘Brasilidade Fantástica’ de um jeito inusitado, com uma peça dourada inspirada nas riquezas naturais do nosso país”, comentou a empresária em suas redes sociais na divulgação de seu look para o evento. A Loewe é uma casa de luxo espanhola especializada em artigos de couro e foi fundada por Enrique Loewe Roessberg, um espanhol. Ana Dias, estilista e especialista em ilustração de moda, afirma que o Baile da Vogue é uma porta de entrada a variados artistas, mas principalmente, uma importante manifestação da moda Brasileira, apesar de muitas vezes o evento ser usado com muito oportunismo por “subcelebridades” para se evidenciar e não de fato celebrar a moda, cultura e diversidade, que é de fato o intuito do evento. “De modo geral, os convidados tentaram decifrar o tema ‘Brasilidade Fantástica’ como algo que fosse surreal e fantasmagórico, mas nem todos foram felizes nas escolhas, na minha opinião. Se formos analisar, a maioria nem se quer considerou algum designer brasileiro para evidenciar e apoiar, sendo que nosso país tem tantos artistas talentosos que poderiam ser notados”, pontua a estilista. 

O "Vira-lata" constituído na subalternidade e na humilhação

         É possível estabelecer um paralelo comparativo entre o acontecimento da moda e o complexo de ‘vira-lata’, abordado por Nelson Rodrigues. "A inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face ao resto do mundo” - ressaltou o escritor em 1958. Desde a chegada dos europeus em território brasileiro e a imposição da cultura estrangeira sobre toda identidade nacional do país, as manifestações artísticas africanas e indígenas, que representam majoritariamente o que é o Brasil, sofreram um processo intenso de silenciamento. Em toda essa conjuntura, a exaltação de tudo aquilo que vem de fora, desde arte até o estilo de vida, e o sentimento de inferioridade tornaram-se um fenômeno recorrente na sociedade brasileira. Em entrevista, a historiadora e professora da Pontifícia Universidade Católica, Carla Cristina, afirma que “O viralatismo brasileiro tem a ver com uma subjetividade constituída na subalternidade e na humilhação. A constante necessidade de aprovação do exterior gera uma dependência de validação e a inferiorização diante de todas as manifestações culturais que possuem raízes brasileiras: As oportunidades de manifestar a riqueza do Brasil, a riqueza cultural, são perdidas para aquilo que parece ser o que vende.” - completa a professora. 

     Além das produções fashionistas exuberantes, o complexo de vira-lata não estampou-se apenas no âmbito da moda. A bebida escolhida para patrocinar o evento foi o Gin, que surgiu na Holanda e se popularizou na Inglaterra após a Guerra dos Trinta Anos. Com a diversidade de frutas tropicais e bebidas nacionais, como a cachaça, homenagear criações estrangeiras em um evento que possui como tema um território tão rico em suas manifestações artísticas e seus costumes, escancara a realidade de um país estruturado na colonização e na imposição cultural.  

O centenário que marcou presença no baile 

           A semana de Arte Moderna de 1922, que inspirou o Baile, foi uma manifestação artístico-cultural que trazia uma nova visão da arte, a partir de estéticas inspiradas nas vanguardas europeias. O modernismo demarca uma grande ruptura, a desassociação da visão colonizadora sobre os costumes brasileiros, além de desconstruir a influência eurocêntrica e imperialista que fundou o país, também é provocar um mergulho dentro da nossa própria cultura. Mesmo com uma grande oportunidade de representar verdadeiramente a história de um povo através de seu próprio olhar, em um evento que possui grande repercussão e importância para as manifestações da moda, mais uma vez a elite brasileira se preocupou em reverenciar construções estrangeiras. Carla completa que a semana de arte moderna vai ficar marcada como um giro de reflexão a respeito da cultura brasileira. “Essa ideia de Oswald de Andrade, ‘Tupi or not Tupi’, o manifesto antropofágico, Macunaíma, Mário de Andrade e suas andanças pelo Brasil [...] é importante lembrar de uma aula de intelectuais da elite brasileira que passam a pensar a respeito do que é a arte que nós fazemos, a arte que nós consumimos, e o que é a cultura brasileira dessas duas primeiras décadas do século vinte.”

         Apesar da grande parcela de convidados que enalteceram as grifes estrangeiras, ainda sim houve trajes inspirados e elaborados por grandes personalidades do Brasil. Um dos exemplos foi Andressa Suíta, que vestiu a talentosa Naya Violeta, estilista preta do centro-oeste, que representa de forma única, a brasilidade em suas criações, além de usar a moda para manifestar a história negra do país, através da influência de festas populares e do Candomblé. Já a advogada e apresentadora Gabriela Prioli, teve seu visual assinado por Teodora Oshima, fashion designer nipo-brasileira e transsexual que traz representatividade pra indústria da moda e cria peças únicas que exibem força e identidade. A moda brasileira costuma ser vista e considerada como cópia das grandes coleções do eixo fashion, como Paris e Milão? Muito pelo contrário, a moda brasileira vai além da identidade, é uma questão de identificação e busca pela maior representatividade étnica e cultural, afinal, isso que verdadeiramente representa o Brasil.  Como pontua Ana Dias: “O Baile da Vogue é apenas a porta de acesso a variados artistas, e principalmente uma importante manifestação da moda Brasileira”. 

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