25 anos depois, MST relembra massacre de Eldorado dos Carajás

Líderes do movimento refletem sobre os eventos passados e suas implicações para o futuro, reforçando a importância da reforma agrária
por
Hadass Leventhal e Victoria Nogueira
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17/04/2021 - 12h

 

 

25 anos atrás, ao final do dia 17 de abril de 1996 no sul do Pará, 21 trabalhadores rurais foram mortos pela polícia em um conflito armado. A tragédia ficou conhecida como o massacre de Eldorado dos Carajás. Hoje, com a conjuntura política do governo Bolsonaro, observa-se que as questões do campo ainda estão longe de serem resolvidas.

 

Antes do massacre

No ano anterior à chacina, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) organizou milhares de famílias em um acampamento à beira da estrada para protestar pela expropriação da Fazenda Macaxeira, propriedade que consideravam improdutiva. Em resposta às reivindicações, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) inspecionou a área, mas concluiu que o sítio era produtivo. Na época, o MST informou que essa decisão foi tomada por conta de um suborno ao superintendente do Instituto no Pará.  

Em março de 1996, as 3.500 famílias acampadas nas estradas retomaram as negociações com o Incra ao ocuparem as terras da fazenda. Ao mesmo tempo, também se reuniram com políticos paraenses, advogando pela mesma causa. O Instituto de Terras do Pará (ITERPA) passou a mediar o acordo entre os camponeses e o Incra, estabelecendo que enviaria 12 toneladas de alimentos e 70 caixas de remédios ao grupo. 

Porém, os trabalhadores rurais não receberam o que lhes havia sido prometido. Assim, no mês seguinte, parte das famílias acampadas decidiu fazer uma marcha até Belém em protesto pela efetivação das medidas acordadas e a disponibilização da Fazenda Macaxeira.

Em 16 de abril do mesmo ano, os militantes bloquearam uma estrada próxima ao município de Eldorado dos Carajás, demandando por suprimentos básicos e meios de transporte para continuar sua caminhada. O grupo negociou, desta vez, com o comandante da Companhia Independente de Policiamento do Meio Ambiente (CIPOMA), que lhes garantiu a chegada de alimentos e ônibus. 

Na manhã do dia seguinte, o grupo foi informado de que o acordo havia sido anulado. Deste modo, os fazendeiros continuaram a bloquear a estrada; agora, na altura da curva S, em Eldorado dos Carajás. Algumas horas depois, estavam cercados por policiais dos municípios de Parauapebas e Marabá. Não se sabe de fato quem iniciou o ataque. Entretanto, não há dúvidas de que o dia terminou com 19 camponeses mortos e 56 feridos. No total, 21 trabalhadores faleceram. 

 

Depois do massacre

No laudo de Badan Palhares, médico legista que analisou o caso, consta que sete vítimas haviam sido lesionadas por golpes de foice, e, em seguida, executadas a tiros. Depois do confronto, o coronel Mário Pantoja, comandante da ação, reconheceu que os guardas haviam exagerado em sua abordagem violenta. 

Hoje, Francisco Moura, membro da direção nacional do MST, indigna-se com a reação jurídica aos acontecimentos. “Não temos nada o que comemorar”, diz ele. “25 anos do massacre de Eldorado dos Carajás. 25 anos de impunidade nesse país”. 

Dos 155 policiais envolvidos no conflito, somente dois foram condenados. Os comandantes Mário Pantoja e José Maria Oliveira, como réus primários, responderam ao processo em liberdade. Ambos foram condenados e presos em 2004, mas, menos de um ano depois, foram soltos por conta de um habeas corpus do Supremo Tribunal Federal (STF) que os permitiu recorrer de suas sentenças em liberdade. 

 Depois que as sentenças transitaram em julgado, o Tribunal de Justiça do Estado do Pará determinou a prisão de Oliveira. Pantoja se entregou espontaneamente, e 16 anos depois, em abril de 2012, os dois foram presos novamente. Quatro anos depois, o coronel Pantoja passou a cumprir prisão domiciliar por motivos de saúde. Ao final de 2020, morreu contaminado pela COVID-19. Já Oliveira segue em prisão domiciliar desde 2018. 

Para nós que participamos do massacre, fica a dor dos camponeses, a dor das famílias, a dor do MST de não ter um julgamento justo”, relata Moura. Além da isenção dos envolvidos, o líder do MST critica a falta de compromisso do governo com o amparo das vítimas restantes. “Podemos dizer que o estado do Pará é negligente sobre essa questão do massacre”. Somente alguns sobreviventes da chacina foram indenizados. “Outros vivem com muita dificuldade no campo porque o massacre tirou a maioria deles do trabalho rural”, revela.

 

Dia Internacional da Luta Camponesa

Apesar do luto, o líder do MST reconhece algumas conquistas decorrentes do conflito. João Paulo Rodrigues, um dos coordenadores nacionais da organização, relembra quenós tivemos um período que poderia ter sido feita a reforma agrária no Brasil, que foi no governo Jango. No golpe. Depois disso, a reforma agrária ficou paralisada por praticamente 50 anos”. Somente algumas décadas depois, com os massacres de Corumbiara e Eldorado dos Carajás, houve “o primeiro grande momento de popularização do tema questão agrária”. A despeito das perdas, o militante comemora a conquista do Dia Internacional da Luta Camponesa. “No Brasil, é um dia decretado pelo congresso nacional”. O “dia de luta pela reforma agrária”, como coloca Rodrigues, é reconhecido por organizações de mais de 80 países pelo mundo, segundo o coordenador.

 

Hoje em dia

Os líderes do MST se mantêm atentos aos projetos políticos atuais, pois consideram que o massacre dos Carajás é emblemático da vida do trabalhador rural brasileiro.  “Estamos voltando a 1850”, alerta Rodrigues. Chegamos 25 anos depois ainda com uma quantidade imensa de famílias sem terra e acampadas. São quase 200 mil famílias que vivem nas condições mais adversas na beira-estrada”. 

Moura descreve que “nós do MST temos lutado diuturnamente para não acontecer mais massacres que nem o dos Carajás, o de Corumbiara, e todos os outros silenciosamente que estão acontecendo aqui na região amazônica”. O ativista adverte sobre as mortes que ocorrem “na calada da noite”.

“Tem muita morte silenciosa de indígenas, camponeses e quilombolas aqui na nossa região que a gente não sabe e não tem resultado final”, denuncia.

A violência contra militantes pela reforma agrária se encontra fortalecida por falas violentas ditas pelo presidente Jair Bolsonaro. Por exemplo, antes de ser eleito, no dia 13 de julho de 2018, em visita à cidade de Eldorado dos Carajás, o político exclamou que “quem tinha que estar preso é a liderança do MST, que provocaram esse episódio, esses canalhas, esses vagabundos, e não o coronel da polícia militar que estava cumprindo o seu papel. Deixo claro, os policiais reagiram para não morrer trucidados com armas brancas desses bandidos do MST. Quase 3 anos depois, as medidas tomadas durante sua administração demonstram que sua interpretação continua intacta.

 

A reforma agrária no governo de Jair Bolsonaro

A reforma agrária permanece um empecilho no governo de Jair Bolsonaro. Contrário à reforma, o presidente nunca escondeu o seu posicionamento em prol dos grandes latifundiários. Inclusive foi eleito com apoio satisfatório por parte da bancada ruralista que enxerga, na figura de Bolsonaro, uma oportunidade de expandir o agronegócio nas regiões norte e centro-oeste do país.         

Em todos os países desenvolvidos foi feito algum programa de reforma agrária. Pelo capitalismo para desenvolver o interior do país, a produção de matéria prima, indústria, gerar renda e ocupação de território, ou pelas experiências revolucionárias socialistas, como foi a mexicana, cubana, chinesa. No Brasil, você tem o processo inverso. É um dos países com maior concentração de terra”, afirma Rodrigues.

A luta pela reforma agrária contrasta com os altos níveis de desmatamento na Amazônia. No mesmo ano de 2020, de acordo com dados divulgados pelo MAAP (Projeto de Monitoramento da Amazônia Andina), a floresta teve perda de 2,3 milhões de hectares, sendo 65% deles no Brasil, o terceiro pior registro nos últimos 20 anos. As áreas devastadas estariam diretamente ligadas à expansão da pecuária extensiva na região. 

"Quem preserva a Amazônia são as comunidades indígenas, ativistas, e a pequena agricultura. Enquanto tivermos o Ricardo Salles à frente do Ministério do Meio Ambiente, e o Bolsonaro, a Amazônia será terra arrasada porque eles não têm compromisso com a preservação ambiental, com os extrativistas e com as comunidades que vivem lá”, ressalta o dirigente nacional do MST. 

A degradação da floresta atrelada à expansão do agronegócio, bem como a recusa do poder Executivo em consolidar um projeto de reforma agrária, são fatores que acirram os conflitos no campo e culminam em massacres, a exemplo do visto em Eldorado dos Carajás. Para Rodrigues, a reforma agrária pode ser feita, simplesmente, com a caneta do Governo Federal. Ela apenas precisa precisa do orçamento aprovado pelo Congresso. Então, hoje, o problema de não ter uma reforma no Brasil é a forma de concepção de mundo deste governo genocida chamado Bolsonaro. É ele que não quer, destaca.

Jair Bolsonaro, antes de assumir a presidência,  já colecionava ataques aos movimentos que lutam pela reforma agrária. O mais recente foi no dia 15 de abril deste ano quando, por meio de suas redes sociais, publicou um vídeo em que acusava o MST de estar agindo violentamente contra assentados no sul da Bahia. Em resposta, o movimento afirmou que não tem envolvimento com o caso, e que espera que as investigações encontrem os responsáveis. 

 

As homenagens às vítimas do massacre de Eldorado dos Carajás

Todos os anos são prestadas homenagens às vidas perdidas no massacre de Eldorado dos Carajás. Desde 2020, no entanto, elas têm sido diferentes em razão da COVID-19. “Por conta da pandemia, temos focado nas ações de solidariedade. Todos os estados estão com ações planejadas, especialmente de doação de alimentos. Também vamos fazer, em muitos lugares, paralisações com faixas, cartazes, algumas chamas que mantêm viva a memória de Eldorado dos Carajás ”, destaca Marina dos Santos, integrante do setor de frente de massas do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra.

Hoje, o local que foi cenário do massacre é considerado sagrado pelo MST. O espaço abriga o Monumento das Castanheiras Queimadas, reduto formado por árvores mortas que representam as vítimas do conflito. Além disso, a fazenda Macaxeira, que era posse de um dos mandantes do crime, foi desapropriada e atualmente integra o assentamento 17 de abril, data que marca o conflito e é comemorado o Dia Mundial da Luta pela Terra. Segundo Marina dos Santos, integrante do setor de frente de massas do MST, “Abril, desde o massacre do Eldorado dos Carajás, é o mês com letra maiúscula. Porque ele é um mês de luto, em memória aos mártires do massacre de Eldorado dos Carajás, mas ele é, também, um mês de lutas. De lutas onde a gente dialoga com a sociedade as bandeiras de reforma agrária, popular, as bandeiras da produção, as bandeiras de uma sociedade mais justa e igualitária”.