Ao desbloquear vias, Gaviões da Fiel protagoniza nova luta contra o autoritarismo

Fundada durante o auge da ditadura militar, a maior torcida organizada do país acumula episódios de resistência
por
Esther Ursulino
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01/12/2022 - 12h

Por Esther Ursulino

No início de novembro integrantes da Gaviões da Fiel, maior torcida organizada do Brasil, desbloquearam vias interditadas ilegalmente por manifestantes bolsonaristas. Inconformados com o resultado das eleições, apoiadores do atual presidente pediam por intervenção federal. O episódio, protagonizado por torcedores do timão, entrou para a lista de vezes em que a organizada se posicionou, ao decorrer de sua história, contra o autoritarismo. 

Logo após o resultado das eleições ser divulgado pelo TSE na noite de 30 de outubro, apoiadores do presidente Jair Bolsonaro (PL) inconformados com a vitória do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) iniciaram protestos em diversas rodovias do país, impedindo a passagem de veículos. No dia seguinte, a Justiça Federal e o STF ordenaram que as forças de segurança realizassem o desbloqueio das estradas. Entretanto, a Polícia Rodoviária Federal e a Polícia Militar não cumpriram a ordem.

Tendo em vista a omissão de quem deveria desobstruir as estradas, membros da Gaviões se mobilizaram para acabar com os bloqueios golpistas. Na noite do dia primeiro, o grupo liberou um trecho da Marginal Tietê, na altura da Ponte das Bandeiras, em São Paulo. Vídeos que repercutiram na internet mostram que, assim que os corintianos se aproximaram, os autores dos bloqueios saíram rapidamente com seus veículos. Em entrevista à Rede Brasil Atual, Chico Malfitani, um dos fundadores da Gaviões da Fiel, destaca que não houve conflito: “Ninguém foi lá para ‘quebrar o pau’, mas para dizer, ‘vamos sair’. O que a polícia poderia ter feito, é um absurdo. Isso mostra que há uma bolsonarização das forças de segurança do Brasil.”

Gaviões da Fiel estendem faixa com a frase "Somos pela democracia".
Membros da Gaviões da Fiel estendem uma faixa com a frase "Somos pela democracia" após abrirem rodovia interditada por bolsonaristas que pediam intervenção federal. 

Parte da torcida viajaria ao Rio de Janeiro para assistir ao jogo entre Flamengo e Corinthians no Maracanã. Contudo, a atitude dos torcedores do alvinegro não foi movida apenas pelo interesse em chegar até o estádio – como fez a torcida do Atlético-MG, Galoucura, que no mesmo dia furou bloqueios para assistir ao jogo contra o São Paulo no Morumbi. Os torcedores do timão expuseram o caráter político de sua ação ao arrancarem faixas e placas que pediam “intervenção federal”, penduradas em um viaduto, para estender um manto com a frase “somos pela democracia”. Também entoaram gritos de apoio a Lula, presidente eleito democraticamente.

Esse episódio de luta contra o autoritarismo, protagonizado por membros da maior torcida organizada do Brasil, se soma a um histórico de resistências que marcaram a trajetória da Gaviões da Fiel, agrupamento que nasceu para combater um ditador. 

Gaviões estendem faixa pedindo anistia
Torcedores da Gaviões da Fiel estendem faixa que pede por anistia ampla, geral e irrestrita

No momento em que a torcida organizada do Corinthians surge, em 1969, o Brasil começava a viver o auge do período de repressão da ditadura militar, que combatia de forma violenta qualquer reunião ou manifestação – além de perseguir opositores do regime. Em consonância com o contexto político, o Corinthians também passava por uma ditadura. 

No documentário Territórios do Torcer (2015), dirigido por Bernardo Borges Buarque de Hollanda, Chico Malfitani conta que o clube era presidido desde 1961 por Wadih Helu, um político da ARENA – partido que apoiava o regime militar. Segundo o fundador da Gaviões, o deputado utilizava o time politicamente para se reeleger. Além disso, o Corinthians passava por um período que ficou conhecido como “faz-me rir”, pois não conquistava títulos de grande expressão há muitos anos.

Sendo assim, a torcida organizada Gaviões da Fiel surgiu para combater a autocracia instalada por Wadih Helu e dar um novo rumo ao timão. No documentário, Malfitani ainda diz que o intuito da organização era ser uma “força fiscalizadora” independente: “Já que o maior patrimônio do Corinthians são seus torcedores, caberia a ela [torcida] decidir o rumo do clube.”. 

No livro Territórios do Torcer: depoimentos de lideranças das torcidas organizadas de futebol, José Paulo Florenzano aponta que o novo agrupamento rapidamente se revestiu de um caráter político, militante e radical. Segundo o autor, os jogos do Corinthians ofereciam aos torcedores a oportunidade aguardada para veicular suas mensagens de protesto. Inspirados no vocabulário de manifestações estudantis da época, os integrantes da Gaviões da Fiel expunham faixas com críticas ao presidente do clube, que queria se perpetuar no poder.

Um jogo entre Corinthians e Palmeiras, que ocorreu em um sábado de abril, pouco antes da Copa de 70, foi palco desses protestos. Na arquibancada do Parque Antártica, torcedores ergueram uma faixa com a frase “Basta!!! Chega de Helusão”, fazendo uma combinação entre a palavra ilusão e o sobrenome do dirigente do time. 

Florenzano ainda resgata depoimentos que Flávio La Selva, sócio número um da Gaviões, deu à revista Placar sobre a relação de Wadih Helu com  a organizada alvinegra. Segundo La Selva, o presidente do Corinthians se sentiu acuado pela existência de um movimento que tinha se construído com o objetivo de apoiar o time, mas sem deixar de lado a crítica e o direito de expressá-la. Por isso, Helu intensificou a repressão  com o intuito de calar a revolta dos torcedores. 

A partir do clássico com o São Paulo pelo Campeonato Paulista de 70 os membros da torcida não puderam mais expor suas faixas. “Dois homens que se diziam agentes do Dops aproximavam-se de quem estava mostrando as faixas e diziam que Wadi Helu era deputado, que não podia sofrer campanhas desse tipo”, conta Flávio, deixando clara a relação do dirigente do clube com os porões da ditadura.  

La Selva também relata que integrantes da Gaviões, que faziam uma passeata pela avenida Pacaembu em comemoração à vitória do time contra o Santos, no início de novembro de 1970, foram alvos de uma emboscada. Enquanto os membros da organizada confraternizavam, vinham passando dois ônibus da torcida paga por Wadih Helu. Um pretexto qualquer serviu de motivo para que os veículos parassem e sessenta homens — munidos de armas, arames, porretes e barras de ferro — saltassem e começassem a agredir o grupo. 

O método repressivo utilizado por Helu ganhou repercussão na imprensa através de manchetes como “Gaviões da Fiel espancados após vitória sobre o Santos”, do jornal Última Hora; e “Gaviões da Fiel massacrados”, da Folha da Tarde. A partir desse episódio de intimidação, a imagem do dirigente do time foi sendo desgastada, e a organizada alvinegra se tornou mais popular. O agrupamento teve grande influência nas eleições para presidência do clube em 1971, quando Miguel Martinez se tornou o novo cartola. Assim, a autocracia imposta por  Wadih Helu foi finalmente derrotada. 

Após essa conquista, a Gaviões da Fiel seguiu lutando por democracia e participação. Ainda no documentário Territórios do Torcer, Chico Malfitani destaca que a organizada sempre esteve presente em eventos políticos importantes para a história do Brasil, como nas campanhas da anistia e das diretas. Em fevereiro de 1979 atos pela anistia já tinham chegado aos campos. Em um jogo contra o Santos, torcedores do Corinthians abrem uma faixa pedindo anistia ampla, geral e irrestrita.

Tendo em vista o histórico de resistência protagonizado pela Gaviões, os novos atos em favor da democracia, como os que ocorreram em 2020 na Paulista e em novembro de 2022, nas rodovias, mostram que a organizada não abre mão dos ideais que nortearam sua fundação.