"Viver é envelhecer e envelhecer é viver", ressalta a gerontóloga Marília Berzins

O Estatuto da Pessoa Idosa completa 20 anos, após duas décadas a ineficiência e desconhecimento são retratos da falta de uma cultura de respeito ao envelhecimento
por
Alice Di Biase
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14/09/2023 - 12h

A apresentação do Estatuto da Pessoa Idosa defende que:“[...] a Lei nº 10.741/2003 sustenta que é obrigação da família, da comunidade, da sociedade e do poder público assegurar à pessoa idosa a efetivação do direito à vida, à saúde, [...], à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária". Colocado em vigor em primeiro de outubro de 2003, em conjunto com a Constituição de 1988, representou um grande avanço no reconhecimento do exercício da cidadania em respeito e proteção daqueles acima de 60 anos.

Ano em que o grupo etário representava 6,6% da população brasileira, o Estatuto da Pessoa Idosa completa 20 anos. Depois de duas décadas assegura os direitos de um grupo maior, 14,7% segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O documento foi aprovado em um cenário em que políticas públicas para a população mais velha começavam a caminhar, antes disso em 1996 a criação da Política Nacional do Idoso norteou o Estatuto.

Época em que o processo de envelhecimento populacional se iniciava, o documento assegura uma série de direitos que hoje já estão habituados à sociedade, mas que representavam evolução no início do século. Direito a atendimento preferencial e imediato; fornecimento gratuito de medicamentos pelo Estado, assim como próteses e órteses; concessão de um salário-mínimo para maiores de 60 anos que não possuam condições de manter sua própria subsistência; gratuidade no transporte público e reserva de assentos preferenciais.

Mas infelizmente, muitas vezes os 118 artigos contemplados, permanecem só no papel. Na prática a situação é diferente, assim como afirma Adriana Horvath, diretora voluntária de captação de recursos da Casa de Repouso Ondina Lobo: “Nós somos muito bem atendidos pela UBS em casos de emergências, mas em casos eletivos o idoso não tem prioridade alguma. Se precisamos de um Oftalmologista, é marcado pra daqui a 4 ou 5 meses, isso pra mim não é prioridade”.

Também são muito comuns, apesar de ilegais, as cobranças excessivas dos planos de saúde por conta da idade elevada, assim como conta Dona Enny, professora aposentada de 88 anos: “Já tenho o mesmo plano de saúde há muitos anos, então continuo pagando o mesmo valor, mas minha amiga mudou de convênio e teve que pagar um valor altíssimo por conta da idade dela”.

Mesmo após duas décadas de implementação, para muitos o Estatuto da Pessoa Idosa resume-se a assentos preferenciais e gratuidade no transporte público, Marília Berzins, formada em assistência social e presidente do Observatório da Longevidade Humana e Envelhecimento (OLHE) afirma: “Eu acho que o grande vazio do Estatuto é a não implementação”, a mestre em Gerontologia Social pela PUC-SP aponta três fatores que impedem essa concretização: a falta de compromisso da sociedade por uma cultura do envelhecimento digno, a ausência de uma mobilização dos próprios idosos em defesa dos seus direitos “A gente não perde a cidadania com a nossa idade, pra mim todo o idoso tinha que ter um exemplar do Estatuto” e a falta de orçamento público, que é deixado de lado pelo Estado, impedindo a aplicação de políticas públicas eficazes.

Berzins adiciona que existe um idadismo muito acentuado e a visão de que o Poder Público gasta muito com o grupo acima dos 60 anos. É contraditório, assim como revela pesquisa do SPC Brasil: 43% dos idosos brasileiro são responsáveis pelo sustento da casa e pagamento de contas. A gerontóloga argumenta: "Essa situação quebra o idadismo de que o idoso é um peso, e até salvou as famílias na pandemia onde se perderam os empregos, mas a aposentadoria ainda chegava. O idoso continua participando e movimentando a economia”.

Esses estigmas se agravam quando membros do Estado o perpetuam, assim como Paulo Guedes, ex-ministro da Economia no governo de Bolsonaro, que em 2021 culpou a escassez de recursos no sistema de Saúde ao aumento da expectativa de vida, sendo ele próprio considerado idoso pela lei. Horvath relata que a principal queixa dos residentes da Casa é a invisibilidade: “A visão se limita a do vovozinho de cabelo branco e fofinho, mas querem ser vistos como seres humanos que ainda tem muito a oferecer”.

Senhora Elenir e sua pintura
Senhora Elenir e sua pintura, imagem disponível no Instagram: @casaondinalobo

A Casa de Repouso Ondina Lobo é uma instituição de longa permanência para idosos em situação de vulnerabilidade social, o projeto é sustentado por doações filantrópicas. A missão da organização é promover o bem-estar e a integração do idoso na sociedade, por meio de atividades plurais. A diretora relata que muitos dos idosos residentes da Casa já passaram por alguma violência ou situação de preconceito: “Muitas pessoas têm dificuldade de olhar para a pessoa idosa, porque se relaciona com a finitude da vida. Precisamos entender que a velhice é só mais uma fase”, ela também cita a importância de campanhas de conscientização contra a violência ao idoso, como o Junho Violeta.

Camapanha Junho Violeta na Casa Ondina Lobo
Campanha Junho Violeta, imagem disponível no Instagram: @casaondinalobo

Marília ressalta que a violência é retrato da falta de reconhecimento de que se deve investir em uma sociedade para todas as idades: “A sociedade só será boa para todos quando a diferença deixar de ser desigualdade. Essa história que nos contaram de que o velho já deu o que tinha que dar foi tão bem contada que os próprios idosos acreditam nisso, na ideia de que junto da velhice vem a incapacidade, isso tem que mudar”.

Horvath destaca que a causa precisa de mais visibilidade para mudar: “O mundo está cada vez mais longevo e ainda temos resistência em olhar pra velhice. O governo precisa falar mais sobre a causa, e a mídia precisa oferecer informação de qualidade”. Segundo o IBGE, em 2060, 25% da população brasileira será idosa, Berzins afirma que é preciso pautar o tema do envelhecimento com compromisso: “A gente tem que falar sobre velhice como direito e não como mérito. Nós não somos juízes para avaliar quem é digno de envelhecer, o Estado tem que oferecer velhice com dignidade para todos”.

Esta reportagem foi produzida como atividade extensionista do curso de Jornalismo da PUC-SP.

 

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