“Quem foi que disse que aboliu?” Esse é o refrão da música da companhia Raízes de Baobá, grupo no qual Elizabeth Regina, 24, canta a sua história. Apesar de residir em Guarulhos, ela decidiu cruzar o limite do município para dar a luz à Maria Lua, pois somente assim poderia fugir das sombras da violência obstétrica que sofreu.
Os médicos do hospital público de Guarulhos tentaram convencer Elizabeth a acelerar o parto afirmando que o bebê correria risco se não fosse feita a cesárea. Consultando outra maternidade, em São Paulo, ela descobriu não só que Maria Lua não corria risco como não havia necessidade da realização do parto naquele dia.
“Sempre me senti violada nos exames, era doloroso. Uma enfermeira disse que eu deveria cortar meus dreads para não ter problemas no parto e porque depois dele eu não iria mais conseguir lavar”, disse Elizabeth.
A cantora também sofreu discriminação no transporte público. “Uma vez no trem lotado havia um assento preferencial que estava ocupado por um homem que não era do grupo prioritário. As pessoas gritaram: Ei! Você não vai se levantar para ela? E aí ele disse: Não vou me levantar, quem quiser se levantar que se levante”.
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), a violência obstétrica se configura através de abusos pré, durante e pós parto. Entretanto, no Brasil, não existe nenhuma legislação específica para essas condutas. Um estudo de 2010, feito pela Fundação Perseu Abramo, mostrou que elas existem: uma em cada quatro mulheres já sofreu maus-tratos no processo.
É uma das formas mais silenciosas de opressão. “Muitas vezes quando falo sobre isso em eventos, pessoas começam a chorar na plateia. E ao conversar com elas escuto: ‘Eu passei por isso, mas não sabia que era violência’”, contou Daniela Rosa, mãe, mestre em sociologia pela Unicamp e também doula – acompanhante que auxilia a gestante durante toda a gravidez e o período pós-parto.
Apesar de atingir todas as pessoas gestantes, a violência obstétrica afeta de maneira específica os corpos pretos. Durante a Conferência Nacional da Promoção da Igualdade Racial, foi divulgado que a mortalidade materna é duas vezes maior para mulheres pretas. “A experiência do racismo atravessa todos os aspectos da vivência de uma pessoa negra e chega, inclusive, na maternidade de forma muito pesada”, afirma a especialista.
Rosa explica que o racismo obstétrico se deve pela formação de estereótipos. “Uma frase bem comum é: ‘Não chora não, porque ano que vem você está aqui de novo’. Partindo do pressuposto que essas mulheres vão ter um monte de filhos”.
Alguns mitos como de que negras aguentam mais dor remetem à escravidão. “A ideia de um corpo preto forte teve que colar no imaginário racista justamente porque éramos nós que estávamos construindo esse país nas costas”.
Esse julgamento é refletido em números: mulheres pretas recebem menos anestesia. Um estudo da Fiocruz revelou que em relação a episiotomia - corte feito na região do períneo para facilitar o parto normal - negras são a minoria. Contudo, elas têm 50% a mais de chance de não serem anestesiadas durante o procedimento. “É um corpo que não é digno de cuidado, não é digno de atenção”, reitera.
Mulheres negras também têm dificuldade em ter um pré-natal e uma amamentação adequados. Muitas estão em relações de trabalho desgastadas e não conseguem licença maternidade. Rosa aponta: “Essa é a marca do nosso racismo: privação”.
Quando deu a luz, Kelly Cristina tinha 16 anos e utilizava o SUS. “Os exames do pré-natal, principalmente os exames do toque eram horríveis. As enfermeiras eram brutas a ponto de me machucar”, contou.
Kelly acredita que o tratamento recebido no Hospital de Guarulhos foi de péssima qualidade, tanto no pré-natal quanto no parto. “As outras mães não reclamavam sobre o tratamento. Penso que isso se dava por eu estar grávida sendo muito nova. Também acho que houve racismo, mas velado”.
Como diz a canção do grupo Raízes de Baobá: “quem foi que disse que aboliu?”. Todos os dias, os resquícios da escravidão rodeiam, oprimem e controlam os corpos pretos.