Várias cartas à democracia: depoimentos do passado que refletem o futuro

O legado de horror deixado pela Ditadura Militar nâo pode e nâo deve ser esquecido.
por
Beatriz Preto Gabriele
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27/09/2022 - 12h

Por  Beatriz Preto Gabriele

 

Neste ano completam-se 58 anos do golpe militar no Brasil. Um período que durou 21 anos, teve 5 mandatos de militares e instituiu 16 atos institucionais. Um período sombrio que mudou vidas para sempre e é disso que vamos tratar. Inicialmente é necessário compreender o que antecedeu ao golpe. Jânio Quadros assume a Presidência em 1961, mas renuncia no mesmo ano. Seu vice, João Goulart , mais conhecido como Jango, assume seu lugar. Apesar de estarem na mesma chapa eleitoral, eles pertenciam a partidos opostos e, por isso, tinham projetos diferentes. Jango apoiava “reformas de base” como a administrativa, universitária e agrária, sendo que esta última muito polêmica pois era combatida pelos latifundiários e parlamentares no Congresso Nacional. Em torno destas questões, o momento político se polarizou, gerando apoio de algumas partes da sociedade para a derrubada do governo.

Em 31 de março de 1964, tanques do Exército foram enviados ao Rio de Janeiro onde se encontrava Jango que, três dias depois, exilou-se no Uruguai deixando um grupo de militares assumir o poder. Em 15 de abril, o general Castello Branco toma posse tornando-se o primeiro militar a governar o País neste período. 48 anos depois, em 2012, ocorreu na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (ALESP), a Comissão da Verdade para investigar as ações dos governos militares contra civis durante o período citado. Ao todo, foram 156 sessões que somaram 40 caixas com milhares de transcrições de depoimentos realizados em audiências públicas, além de artigos de jornais, revistas, livros e outros materiais. Essas caixas encontram-se, hoje em dia, no acervo histórico da Assembleia.

Dez anos depois da finalização dos trabalhos dessa comissão, em 2022, muitas entidades brasileiras importantes juntaram-se no Largo São Francisco e em outras localidades do Brasil, para a leitura da “Carta às brasileiras e aos brasileiros em Defesa do Estado Democrático de Direito”. Esse movimento, de manifestação da sociedade em prol da democracia fez-se necessário após as constantes dúvidas, ataques e ameaças às urnas eletrônicas e, consequentemente, às eleições feitas diretamente do presidente da república, Jair Bolsonaro. Observando todos esses fatos, é curioso observar o curso que nossa história vem tomando e como as ameaças à democracia tornam-se repetitivas. Observando o perigo e as tragédias que essas repetições podem causar, faz-se, mais que nunca, necessário recordar o período que censurou, torturou, matou e deixou muitas vítimas e está ameaçando retornar.

Depoimentos recolhidos na Comissão Nacional da verdade (CNV), serão trazidos a seguir como o de Leonardo de Azaredo Carneiro, que conta sua experiência nas as sessões de tortura:

“O choque é realmente uma coisa... Eu tive o azar, quer dizer, isso foi um azar, de quando eu caí, a maquininha que dá choque, que é chamado de magneto, que o telefone acompanha, estava quebrado. Então, eles me deram choque de tomada. Eles amarraram um fio no meu dedão do pé, um fio no dedão da mão e ficavam na tomada, eles enfiavam o fio na tomada, um outro tirava o outro fio, tirava e colocava. E ficava nisso.“

Maria Aparecida Costa faz considerações sobre o que foi viver a tortura e, além disso, o que foi ser mulher nesse período:

“Como ser humano, todos nós tivemos absolutamente e, eu acho que o peso é igual para todos nós, homens, mulheres e todos aqueles que passaram nas mãos deles, que viveram essa situação de vulnerabilidade absoluta, nas mãos de um terror institucionalizado, são a situação e acresce, essa questão, você tem tudo isso e você é obrigado a se despir, os homens também foram, mas talvez, para uma mulher, eu acho que isso tem um peso terrível, pela sua formação, pela formação social, ideológica, você por si já é uma exposição, aumenta ainda mais a tua exposição”.

Para além desses casos, que já nos trazem imensa revolta e consternação, algo mais chocante ainda aconteceu, a frequente tortura de mulheres grávidas.  Izabel Fávero, relata um desses episódios de tortura na gravidez.

“Era um jogo de tortura psicológica, física, pra desestruturar mesmo, desestabilizar a gente. Eu fui muito ofendida, como mulher, porque ser mulher e militante é um carma, a gente, além de ser torturada física e psicologicamente, a mulher é vadia, a palavra mesmo era “puta” (...) enfim, eu não me lembro bem se no  terceiro, quarto dia, eu entrei em processo de aborto, eu estava grávida de dois meses, então, eu sangrava muito, eu não tinha como me proteger, eu usava papel higiênico, e já tinha mal cheiro, eu estava suja, e eu acho que, eu acho não, eu tenho quase certeza que eu não fui estuprada, porque era constantemente ameaçada, porque eles tinham nojo de mim”.

Esse comportamento era comum já que, pouco importava se as mulheres estavam grávidas ou não. Em presídios, a estrutura era precária e as grávidas não era sujeitas a exames, além de ocorrerem muitos casos de abortos devido a choques elétricos, por exemplos, como recentemente foi divulgado pela imprensa em áudios vazados.

Mariluce Moura, é outra mulher que conta desse mesmo trauma:

“Eu queria muito saber sobre qual era a situação, qual era o dano que o bebê, o feto, poderia ter sofrido, dado que eu fui espancada, tomei choques, enfim, toda aquela barbaridade de torturas, e tal”.

Além daqueles que viveram as consequências da ditadura na pele, existem os parentes e amigos que sofrem até hoje. A comissão da Verdade ouviu cerca de 40 filhos de presos políticos perseguidos, desaparecidos ou mortos pelo regime, dentre eles, Tessa Moura Lacerda, filha de Mariluce, a bebê que estava no corpo da mãe no caso que vimos acima.

“Eu quero enterrar meu pai. (...) O máximo que eu posso fazer, é dizer para mim mesma, “está bom, o meu pai está morto”. Mas não dá para eu dizer “você nunca vai ter o corpo, nem túmulo, nem, jamais, vai ter direito de fazer o luto de maneira decente”. Isso não aceito. Não dá. (...) Isso é muito dolorido. Muito doloroso. Mais até, mais doloroso até, do que eu saber que a minha mãe foi torturada comigo dentro da barriga dela, e até que ponto essa tortura me atingiu”.

As mortes, as sessões de tortura, perseguições deixaram marcas profundas naqueles envolvidos direta ou indiretamente. Mas quais são as marcas deixadas naqueles que praticaram todos esses atos? A filha de um militar, Roberta Aquino, nos contou a experiência de seu pai: “(Ele) encontrou na polícia militar uma possibilidade de um trabalho seguro, para se sustentar e ajudar a sua família”.

Roberta conta que ser militar nunca tinha sido o sonho do pai, ele queria cursar Economia ou Sociologia, mas como muitos, encontrou no serviço militar uma possibilidade mais segura. Mas escolher uma profissão que não era a desejada, ficou longe de ser seu maior desafio.

“Por natureza, meu pai era um comunista do tipo mais apaixonado, era também um humanitário e um leitor verdadeiramente viciado. (...) Não consigo dimensionar como ele deve ter se sentido com o golpe militar. Imagino que todo esse período tenha sido uma verdadeira prisão para ele, uma luta interna. A corporação a qual ele pertencia se tornou seu inferno. Ele odiava os militares, mesmo sendo um. Repudiava a direita, a ditadura. Guardava enorme rancor”.

Roberta também contou sobre o dia a dia do pai: “Na rua, as pessoas sempre cumprimentavam, sempre solicitas, abrindo passagem. Aos olhos de uma criança, ele parecia importante, especial. O que eu achava ser respeito, depois entendi que era medo. Medo daquela farda, do que ela representava. Me lembro da sensação cada vez que meu pai saia para trabalhar. Do seu semblante sério, preocupado. O ar parecia pesado, parado, tenso. Enquanto vestia o seu uniforme verde oliva, impecavelmente passado, ele conversava baixinho com minha mãe, ela também estava sempre inquieta, perguntado se estava tudo bem, dizia para ele tomar cuidado, falava coisas que na época para mim não tinham sentido. Eu chegava perto ele parava de falar. Anos depois em uma conversa com minha mãe entendi o que aquilo significava”.

O pai não comentava da ditadura com ela. “Algumas coisas que sei são conversas escapadas, outras, lamentos de minha mãe”. Ao contrário da conduta de muitos militares, o pai de Roberta fez algo que muitos não fizeram. Ou por convicção ou por medo.  

“Um dia, meu pai foi convocado a acompanhar um militar do DOI-CODI. Não falaram nada, apenas deram essa ordem e ele o seguiu. Quando percebeu, estava nos porões da ditadura. Em uma sala fechada, à sua frente tinha uma mesa e uma máquina de escrever. Foi quando o militar que o convocou disse que um de seus funcionários não pôde trabalhar e ele assumiria o seu posto naquele dia. Ele iria anotar um depoimento de um preso político. O que meu pai viu fazerem com aquele homem, foi de tamanha desumanidade que ele não chegou a escrever uma linha. Ele vomitou, ficou paralisado de horror, quando retiraram ele da sala sob ameaça de que ele não poderia abrir a boca sobre o que aconteceu ali. Meu pai nunca contou essa história, mas acho que aquele momento de certa forma o moldou. Depois daquilo, minha mãe contou que sempre que ele conseguia ver na mesa ao lado os nomes de pessoas que estavam na lista de suspeitos e que seriam presos. Meu pai tentava descobrir quem eram e encontrar uma forma de avisar, dar um telefonema anônimo. Entre esses nomes, uma vez meu pai reconheceu o de um professor que morava no prédio ao lado. Ele deixou um bilhete embaixo de sua porta, para que ele se escondesse pois iriam pegá-lo”.

Roberta, mesmo sem saber qual foi o fim dessa história, mostra que herdou a empatia do pai: “Não sei se foi em tempo, se ajudou... espero que sim”.

Apesar das boas ações, as consequências começaram a chegar e ele foi alertado por um amigo que suspeitas começavam a surgir e ele conseguiu ser transferido. Pouco depois, aposentou-se e foi para a reserva.

Roberta pontua que essa foi a emancipação do pai depois de anos, estando na reserva ele pôde estudar o que sempre quis, pôde ser quem realmente era.  “Uma verdadeira libertação o que permitiu que meu pai fosse mais ativo politicamente. Se filiou ao PT logo de sua fundação, um esquerdista e defensor dos direitos humanos inabalável. Nunca parou de atuar politicamente, de participar de encontros passeatas, fazia parte de comissões, as primeiras eleições diretas ele chegava em casa e já distribuía os bottons de estrela e acordava a gente cedo no dia de eleição, com os panfletos para ajudar a distribuir na boca de urna”.

O pai de Roberta pode ser uma exceção entre os militares. Por ideologia, convicção, falta de oportunidade ou mesmo por medo, a corporação militar causou um enorme mal à sociedade ao assumir o governo do País. A tendência da história é se repetir e hoje vemos um exército, novamente, alinhado com um governo extremista. Vemos novamente, um cenário em que o exército se envolve com política, mesmo tendo essa atividade vedada pela Constituição.  Vemos, novamente, o uso da violência física e psicológica na tentativa de calar os opositores. Vemos extermínios de negros e indígenas em massa. Vemos as armas como maior símbolo de segurança e força.

É impossível colocar no papel a dimensão dos traumas pessoais de tantos brasileiros. De uma maneira ou de outra, esses traumas transformaram-se em um luto coletivo, luto que talvez nunca tenha sido vivido profundamente pois os crimes desse período nunca foram julgados e os responsáveis punidos.

Esperemos que o luto vire, enfim,  luta. Em 2022, 58 anos depois do início do golpe, 12 anos depois da Comissão da Verdade, vemos inúmeras demonstrações – de diversas dimensões  - de repúdio ao regime militar e ao legado que ele deixou em nossa sociedade. Por isso, nos mobilizamos e seguiremos lembrando e relembrando que tudo isso não pode voltar a acontecer.

Ditadura nunca mais!

 

 

 

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