Vape é reinvenção high-tech do vício

Entre o cheiro doce das essências e a promessa de modernidade, a fumaça do futuro também pode sufocar.
por
AMANDA CAMPOS
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17/11/2025 - 12h

Por Amanda Campos

 

Nos últimos anos, o cigarro eletrônico deixou de ser uma excentricidade importada para se tornar parte do cotidiano urbano. Em festas, universidades e até nas pausas do trabalho, o vape aparece como símbolo de modernidade: um acessório que mistura estética minimalista, cheiro doce e promessas de “menos dano”. O discurso é sedutor: a tecnologia teria finalmente “melhorado” o hábito de fumar. O vape veste a linguagem da inovação, mas repete a lógica do vício: transformar um produto nocivo em estilo de vida. Só que, por trás do design futurista e das nuvens de vapor perfumado, o que se vende é uma sensação de controle. O usuário acredita poder dosar, escolher o sabor, pausar quando quiser. Mas o que as pesquisas começam a mostrar é o oposto: a nicotina líquida, altamente concentrada e de rápida absorção, torna a dependência mais sutil e mais intensa. Segundo estudos recentes da Fiocruz, o consumo entre adolescentes brasileiros quase triplicou desde 2019, mesmo com a venda proibida no País pela Anvisa.

A propaganda do cigarro eletrônico raramente fala sobre a nicotina. Fala de liberdade. De sabores tropicais, de autonomia, de um “novo estilo de respirar”. Os dispositivos são finos, coloridos, discretos e, no imaginário coletivo, pertencem a um futuro limpo e tecnológico, distante do cheiro amargo e da imagem decadente do cigarro tradicional. Nas redes sociais, o vape virou performance visual: fumaças densas e coloridas se espalham em vídeos de poucos segundos, acompanhadas por trilhas eletrônicas e legendas sobre “bem-estar”. É a estética da leveza, da personalização, da escolha. O marketing atua em silêncio, sem precisar de comerciais na TV. Influenciadores, streamers e até artistas pop exibem o vape como extensão de seu estilo de vida. O produto se infiltra nas narrativas de autenticidade e modernidade, e a fronteira entre prazer e vício vai se tornando cada vez mais nebulosa.

Ao se apresentar como um dispositivo tecnológico, portátil e inovador, o vape herda o prestígio da inovação. É pequeno, recarregável, controlado por sensores, tudo o que a linguagem contemporânea associa ao progresso. A mensagem é sutil, mas poderosa: se tem tecnologia, deve ser seguro.Porém, a própria natureza do vape contradiz essa lógica. Estudos do Instituto Nacional do Câncer (Inca) apontam que os líquidos usados nesses dispositivos contêm nicotina em concentrações até três vezes superiores às de um cigarro comum, além de substâncias como propilenoglicol e metais pesados. Mesmo sem combustão, há impactos respiratórios e cardiovasculares já documentados. Essa ideia de neutralidade social faz parte de sua força simbólica: o vape pode ser usado em lugares fechados, durante o trabalho, no carro, na festa. O gesto de fumar, antes associado à culpa e ao risco, retorna como experiência estética e tecnológica. O problema é que essa aparente leveza mascara uma dependência silenciosa.

Em meio a esse cenário, a história de Marina, analista de marketing de 28 anos, ajuda a ilustrar o alcance dessa contradição. Marina começou a usar cigarro eletrônico aos 21, em uma festa, quando o dispositivo ainda era uma novidade. Ela acreditava estar fazendo uma escolha mais saudável: o sabor era agradável, o cheiro não incomodava, e a portabilidade tornava o hábito quase imperceptível. Em poucos meses, o vape passou a acompanhá-la em todos os momentos, era discreto, prático, aparentemente inofensivo.

Marina ainda se lembra do som metálico do primeiro click que deu início ao hábito. “Era bonito, sabe? Parecia coisa de filme. Luzinha azul, vapor cheirando a pêssego. “Eu me senti moderna.” Ela fala com a voz calma, mas entrecortada por pausas longas, como quem mede o ar antes de continuar. No início, o vape era um adereço, quase um amuleto, algo que combinava com sua rotina corrida, o coworking envidraçado e as festas de sexta à noite. Marina representava o público-alvo perfeito: jovem, conectada, atenta às tendências e acostumada com a lógica das notificações instantâneas. “A gente vive cercado de telas, dados, algoritmos. O vape parecia só mais uma extensão disso, uma forma de aliviar o estresse com estilo.”

A transição foi sutil. O dispositivo estava sempre por perto, entre o notebook e o copo de café gelado, no carro, na bolsa, no bolso do casaco. Em reuniões, ela desligava as câmeras e tragava, soltando uma névoa quase invisível. Podia parar quando quisesse. Mas não parava. Os primeiros sintomas vieram como pequenos alarmes ignorados. Uma tosse seca que ela atribuía ao ar-condicionado. Um cansaço que parecia só mais uma consequência da rotina. Até o dia em que o ar faltou de repente, no meio do trabalho. “Foi como tentar respirar por um canudo entupido”, lembra. Na emergência, a cena parecia sair de um contraste cruel: a mulher acostumada a algoritmos de eficiência agora presa a um inalador, tentando aprender de novo o gesto de respirar. O diagnóstico de pneumonite química desmontou o discurso da leveza. “Meu pulmão tinha partículas metálicas.”

O diagnóstico veio acompanhado de um alerta: sinais de bronquite crônica em formação e vestígios de partículas metálicas no tecido pulmonar. Marina ficou internada por dois dias e precisou de tratamento com corticosteróides e antibióticos. A recuperação foi lenta. Durante os meses seguintes, enfrentou tremores, irritabilidade e insônia – sintomas da abstinência de nicotina. Desde então, faz acompanhamento regular com um pneumologista e sessões de fisioterapia respiratória. Hoje, Marina está há mais de um ano e meio sem usar o dispositivo, porém ela relata que ainda sente falta de ar ao subir escadas.

Marina se tornou, sem querer, o retrato de uma geração que trocou a fumaça amarelada do cigarro tradicional por uma névoa digitalizada e doce. O mesmo gesto, só que com branding atualizado. Ela representa a dissonância de uma era em que tecnologia e dependência andam lado a lado, e o vício ganha embalagem de futuro.