Entre as principais características que arte possui, a adaptabilidade é uma das principais. Com a chegada da arte moderna, houve diversos tipos de rompimentos, como a fuga dos cavaletes e a rejeição ao academicismo. Porém, na nova fase da arte contemporânea aconteceu um novo salto, quando arte expandiu-se por todos os meios possíveis; do grafite às projeções feitas com arte computadorizada. E já não há limites, a arte percebeu que pode ocupar todos os espaços usando todas ferramentas que há e o que “não há”.
Dos fatores que potencializam o crescimento da arte no decorrer dos séculos, a comercialização é uma das principais causas. Bilhões de dólares já foram negociados para a aquisição de obras de artes, seja por meio de leilões, marchands ou direto com o artista (sendo essa a mais difícil, pois costuma haver um intermediário); além ser um meio restrito, onde as elites têm facilidade e poder para a compra. Não é à toa que ainda há o estigma de que quem consome arte ou se interessa sobre o tema é possivelmente de uma classe econômica alta. Mas com as ressignificações que estão ocorrendo no campo arte, ela está se tornando acessível ao público, seja somente pelo o encontro com a obra e o seu conteúdo, como também, com a compra propriamente dita.
Há poucos anos, tudo que era criado pelo meio digital poderia ser visto como algo público, quando qualquer pessoa poderia reproduzi-la ou fazer uma cópia e salvá-la em seu computador sem problemas, configurando um tipo de "use e abuse" democrático. Mas e se fosse possível comprar o direito de imagem e ser o seu dono? Evidentemente, a imagem continuaria circulando pelas redes, mas só você seria o proprietário. A arte digital atrelada ao NFT, foi o causador dessa nova forma de ver e comercializar arte. O NFT (“Non Fungible Token” – Traduzido: token não substituível) é a tecnologia através da qual a arte digital vem sendo comercializada. O “token” funciona como um contrato, que autentifica a compra e venda no meio digital; funciona de forma semelhante como quando compramos um imóvel ou algo que necessite de um cartório. Já o “não fungível” significa que é um objeto único, havendo somente ele, sem cópias (por exemplo: obras de arte, objetos raros, contratos e patentes). Portanto, o NFT é a venda de um produto único por intermédio de um contrato digital. E como todo contrato, que precisa ficar em um livro de registros no cartório, com o NFT também não é diferente; é a blockchain que faz este papel, arquivando todos os registros de compra e venda em servidores que operam 24 horas por dia.
Na última semana de agosto de 2021, houve o recorde de vendas de NFT. O valor ultrapassou USD 800 milhões em diversos tipos de artes digitais, comparado com a primeira semana do ano, o valor foi em torno de USD 2 milhões. Os números não mentem, a comercialização de arte digital já é mais uma nova alternativa para se adquirir arte. A dinâmica da compra também se modifica, quando comparada com o estilo convencional. Agora o comprador pode comprar diretamente do artista sem grandes trâmites, não havendo mais nenhum intermediário entre eles; rompendo o status quo que havia com a galeria. Para o artista é mais vantajoso, pois além de aumentar a facilidade de comercialização e de expandir o alcance da sua obra (rompendo esferas que limitavam o alcance da arte), pode também aumentar o seu lucro no futuro. Por exemplo, se o comprador resolver revender a obra no futuro, e ela estiver valorizada, o artista tem direito a uma porcentagem do valor da venda (comissão). O acesso ao histórico de revenda pode ser algo dificultoso de se rastrear (na arte não digital), pois o artista não tinha como consultar de forma confiável e eficiente com quem está a sua obra e por quanto ela estaria sendo negociada. Algo que a blockchain mostraria rapidamente, dando o acesso à transação de contratos de compra e venda.
Alexandre Rangel é artista multimídia e desenvolvedor de software, sendo um dos percussores da arte digital no Brasil. Para ele, o NFT é uma tecnologia que age de boa-fé, pois além da transparência na informação e dos históricos, é possível o artista ter um panorama exato de como está repercutindo a sua obra na esfera digital; a questão da popularidade das obras, algo que se tornou fácil para o artista analisar como a sua obra está sendo aceita. Para ele, a plataforma serve também como estímulo entre os artistas iniciantes, que compram obras entre eles como forma de reconhecimento e admiração pelo trabalho criado.
Por ainda ser algo abstrato e recente, os programadores estão criando espaços que se assemelhem a uma galeria de artes digital (metaverso), criando uma estrutura 3D em que o interessado pode circular pelo o espaço e “ver” a arte em exposição; podendo comprá-la de imediato se quiser. Outra forma criada pelos artistas para haver um elo entre o digital e o real é fazer uma cópia da arte (sendo uma impressão com certificado). Dessa forma, o comprador teria um contato mais próximo com a obra, porém, pouquíssimos artistas adotam essa estratégia. É possível que este método seja temporário, sendo apenas um processo de adaptação na transição entre o tátil e o imaterial.
Porém, nem todo o processo da arte digital está sendo amigável, sendo um método criado por um coletivo de artistas com uma visão radical (podendo serem considerados como iconoclastas da arte materialista). O coletivo participara de um leilão da Christie's e arremataram um desenho do artista Picasso por USD 21 mil (obra: "Fumeur V", 1964). Em seguida, digitalizaram a obra em um scanner em alta resolução e arquivaram a imagem em um servidor. Bem, e a original? Ela foi queimada em uma fogueira ao ar livre (todo o ato foi filmado). O processo de digitalizar a obra e queimá-la foi visto por muitos como algo espantoso, criando a problemática de por onde a arte pode caminhar, e a preocupação de como pode ser violento este processo. No fim, a obra incinerada se transformou em uma NFT e não só isso, quem arrematasse a obra, receberia as cinzas da obra original emoldurada. O que acaba criando um paradoxo. Perante as leis contratuais, qual seria a obra original? As cinzas ou os pixels?
Ainda há muito o que se discutir sobre o tema, será necessário observar o seu comportamento e como a sociedade (seja os colecionadores ou os aficionados) reagirá no decorrer das décadas. Em uma civilização que caminha para digitalização de todos os processos, é inevitável que essa tecnologia tome forma; o problema mora aí, de qual forma ela vai desenvolver-se. Para Rangel, é um processo natural. Somada a potência das criptomoedas, a arte digital terá o seu reconhecimento assim como ocorre com a moeda digital. Naturalmente, existem atitudes radicais que podem servir como oportunismo ou como algo revolucionário, dependendo de qual perspectiva utilizar. Sobre um olhar conservador, atitudes que querem romper com o materialidade podem ser vistas como violência à imagem e ao peso simbólico do que ela representa. Mas é necessário relembrar que ao longo do processo truculento da história da arte, foi necessário romper a reatividade com a subversão, seja com pinceladas raivosas ou com fogo na tela.