Uma noite inusitada no elevado central

Grupo de capoeiristas vivem situação inusitada no grande elevado de São Paulo conhecido como Minhocão
por
Juca Ambra de Oliveira
|
01/12/2020 - 12h

 

                     Ao final da roda de capoeira, tradicionalmente faz-se o samba de roda, os instrumentistas tocam, os visitantes se posicionam em roda e as e os capoeiristas sambam e convidam quem está na roda a sambar também. Na sequência todos, ou a maioria, vão ao bar de costume para confraternizar e comemorar mais um encontro.

                     A tradição se fez àquela noite, aliás como é muito comum nas manifestações de cultura popular, onde se cultuam costumes antigos, passados através da oralidade às novas gerações.

                      Lorimbal um artista soteropolitano, fazedor de berimbaus, compositor, tocador e cantador, visitava o grupo naquela noite. Falou, tocou, cantou e no bar, conduziu o samba e muitas rodadas de cerveja, gozando de todo o “moral” de um velho capoeirista e artista popular.

                     Ao final da noite de bebedeira, todos indo para casa, um grupo encaminhou-se ao Minhocão, famoso elevado localizado na região central da capital paulista. O viaduto liga a Zona Leste à Oeste e tem alguns quilômetros de extensão, é interditado para o trânsito de carros aos domingos, feriados e todas as noites, assim sendo, transforma-se num espaço para o lazer e caminhadas aos moradores da cidade, porém num centro urbano sempre há problemas, como segurança por exemplo, em lugares com características tais.

                    Como já era começo de madrugada, o Minhocão já estava vazio, algumas pessoas fumando, outras namorando, travestis, garotos e garotas de programa, moradores da região e em situação de rua... ao longo do viaduto mudam as tribos de frequentadores, entretanto na madrugada, toda a atmosfera presta-se a um clima de marginalidade.

                     Neste clima e contexto o grupo citado acompanhava o velho capoeira baiano sobre o elevado, ele estava feliz por estar em São Paulo e caminhar em um viaduto tão cheio de histórias sobre as noites paulistanas.

                      Uma viatura de polícia surgiu no horizonte em que as curvas do Minhocão permitem avistar, com giroflex ligado, iluminava com vermelho piscante um pequeno raio em volta de si mesma, ganhando o asfalto em direção ao grupo de capoeiristas, o qual era muito diverso, por sinal. Haviam estereótipos que a polícia não costuma incomodar e outros e outras que a polícia não deixaria de incomodar, principalmente num cenário como o descrito.

                     -Todo mundo com as mãos na cabeça, bora rápido todo mundo. Berrara agressivo o policial. Outra viatura encostou na sequência para desespero de todos ou aos menos dos paulistas que sabiam bem o que é lidar com a truculência da PM na madrugada num lugar hostil.

                      Após uma revista geral, começaram as perguntas, quem, como, quando, onde, porque?... Apesar de não serem jornalistas, buscavam histórias que poderiam fazer alguma diferença ou causar alguma contradição entre as falas dos amigos. Encontraram um cigarro de maconha no bolso de um dos capoeiras. Branco vestido com camisa de escritório e calça de formatura, vestígios de gel no cabelo liso, claro e bem cortado, o rapaz não era propriamente o perfil procurado pela polícia, portanto havia necessidade de liga-lo a alguém, ou seja, procurar alguém com uma aparência menos “normal”, para envolver com o achado ilegal.

                       Daí em diante muita tensão:

                       - De quem é essa droga? - Pergunta o policial mesmo tendo a achado num bolso específico. Um outro polícia com uma pistola de mira laser, posiciona o feixe luz vermelha que sai da arma, na cabeça de Bola Sete, um angolano amigo do grupo e que estava ali por pura coincidência, posto que havia encontrado os amigos já na caminhada pelo elevado.

                             Lorimbal aparentava tranquilidade, negro, com roupas nada “normais”, coloridas demais para um senhor daquela idade, negro, cabelos em tons grafites, brincos e anéis que chamavam atenção e negro. Manteve a tranquilidade, mesmo quando todos perceberam que o famigerado e desconcertante feixe de luz, descansava agora em sua testa.

                             Um dos policiais caminhou até Lori, lançou lhe um olhar inquisidor pela excentricidade de seu estilo e comportamento. Visivelmente incomodado com a presença do meliante, o guarda buscava algo para intimidar o velho negro e eliminar aquele cinismo demasiado para quem está acuado. Todos observavam preocupados com medo das consequências que poderiam gerar o comportamento rebelde do Mestre dos berimbaus, porém este não mudou sua fisionomia de tranquilidade irônica.

                            O polícia irritado agarra-o pela roupa na altura do peito, olha nos olhos com ódio e, pós um silêncio aterrorizante, perguntou agressivo contundente:

                           -Você tem passagem negão?

                           Lori dá um passo para trás, respira e ajeita a bata trazida da África por um de seus alunos e que vestia cheio de orgulho, agora ofendida pela brutalidade da mão pesada e opressiva do outro. Num jogo de corpo, absolutamente engraçado, enche o peito e com uma inocência artificial, solta sua pérola.

                            -Não, ainda não sei quando vou viajar... talvez só para o fim do mês.

                             Por um momento toda a tensão dilui-se em pequenos olhares e sorrisos, inclusive entre os homens sérios da lei. Houve uma quebra tão grande no clima, que a abordagem se desfez ali, não havia mais condições de intimidar aquelas pessoas, o líder possuía uma habilidade que os policiais não estavam preparados para confrontar. Com uma prancheta na mão, anotaram o nome do branco portador do cigarro proibido e todos foram dispensados.

 

Tags: