Um vício mais comum do que se imagina

A história de milhões de brasileiros nasce na falta
por
Gabriela Figueiredo Rios
Victoria Leal
|
21/09/2023 - 12h

Por Gabriela Figueiredo (texto) e Victoria Leal (audiovisual)

Vento no rosto, uma pradaria em tonalidade verde queimada e muito suor. Esta era a visão de Zé Braz enquanto trabalhava na plantação com seu pai, ainda na pré-adolescência. A vida começa cedo para quem nasce na falta. Eram muitos irmãos e apenas algumas mãos para dar conta de toda a demanda da casa. Os semblantes cansados dos pais refletiam a falta de condições para manter a dignidade de uma família. Ainda mais comum do que se imagina, é dar um jeito de sobreviver à falta de emprego de carteira assinada e escolaridade do primário. O jeito foi mudar de Iapu, interior de Minas Gerais, para São Paulo, em um movimento migratório em busca da sorte, como os milhares que levantaram as estruturas e história da capital. Zé Braz está primeiro entre estes milhares.

Os bicos para arrumar dinheiro vieram antes das apostas, mas elas não deixaram de vir. Em suas próprias palavras “começou primeiro com a bebida, depois o cigarro... aí o jogo. O jogo é terrível. Eu sei que a gente não pode colocar a culpa na bebida, mas todo mundo fazia na época. Jogava truco, baralho, sempre valendo dinheiro, aí apareceram novos jogos... jogava na loteria também, fazia esses jogos de montante com os caras do bar sabe [...]. Joguei no bicho, sempre ganhava miudeza, qualquer dinheiro que entrava já era alguma coisa. Mas aí pegava e gastava no bar.”

Zé representa apenas uma pequena parcela das pessoas que tiveram problemas com apostas no Brasil. Apesar de ter experiências apenas com apostas em jogos de bares, casos semelhantes com apostas esportivas online vem se tornando algo comum na vida dos brasileiros. Tão comum, que segundo a pesquisa Industry Insights, feita pelo jornal O Globo, para 12% das pessoas que responderam, as apostas são a principal fonte de renda. Para 67% dos brasileiros, apostar hoje é entretenimento e para 43% é negócio. O risco está se tornando comum. 

As apostas esportivas online funcionam por casas de apostas, que são os modelos mais populares hoje e mais simples. As pessoas escolhem uma situação dentro de um evento esportivo e apostam nas probabilidades com maiores chances de se concretizar dentro do jogo. Seja desde o cavalo que vai disparar em primeiro em uma corrida, até a quantidade de pênaltis em uma partida de futebol. Se o resultado se concretizar, os jogadores recebem um pagamento com base nessas probabilidades.

 Em ritmo crescente no Brasil, essa modalidade já era muito comum em países europeus, que praticavam alternativas “rentáveis” para dinamizar ainda mais os jogos. Por ser uma questão emergente no País e que se acentuou ainda mais por conta da pandemia, o mundo das apostas online é a forma mais fácil de se lucrar. Desde que você não esteja do lado mais fraco da corda.

E o lado mais fraco da corda é formado pelos milhares dos quais, não só Zé Braz fez parte, mas Mateus Haidar, de 27 anos, advogado e empresário, também somou. Mas o verde que o Mateus enxergava deste lado, era o tecido da mesa de poker, que começou presencialmente, mas logo passou para o online, “em sites como pokerstars e partypoker, naquela época só existiam sites gringos. Percebi que estava viciado quando perdia rapidamente o dinheiro que recebia trabalhando para as casas”.

Segundo pesquisa do Datahub, publicada pela Máquina do Esporte, o crescimento de empresas de apostas esportivas digitais no Brasil foi de 360%, entre 2020 e 2022. E seguindo o movimento publicitário de todo novo comércio emergente, não demorou muito para que as casas começassem a patrocinar influencers, pagar por anúncios e até investissem em mídias offline - anúncios em estádios e telas espalhadas pelas cidades - para atingir seu público alvo. 

Em uma polêmica recente, no mês de junho deste ano, o youtuber e influenciador digital Felipe Neto foi questionado de continuar apoiando e divulgando a casa de cassinos e apostas “Blaze” - que fechou contrato com o comunicador em 2022 - após ser acusada de calote na Internet pelos usuários, por não pagar os clientes que obtinham lucros financeiros. Outros influenciadores de grande impacto, como a advogada Deolane Bezerra, ex-esposa do funkeiro, Mc Kevin, também faz parte do grupo de pessoas patrocinadas pela empresa. A advogada tem mais de 5 milhões de seguidores no Instagram e também recomendava a casa em suas redes sociais. 

Em declaração à Agência Mural, o diretor, André Gelfi, do Instituto Brasileiro de Jogo Responsável, composto pelos grupos Bet365, Flutter, Entain, Betsson Group, Betway Group, Yolo Group, Netbet Group, KTO Group, Rei do Pitaco, Novibet, LeoVegas, Grupo OKTO e Pay4Fun, afirma que o instituto se preocupa com a proteção de menores de 18 anos na divulgação das casas de aposta que o compõe. 

O grupo desenvolveu uma nova cláusula que proíbe o direcionamento do conteúdo para menores de idade e a utilização de imagens de "pessoas ou personagens, reais ou fictícios, de relevância ou notoriedade pública que atraiam a atenção dos jovens”. Apesar da parcela significativa de casas de apostas que entendem e procuram minimizar o impacto negativo por meio da publicidade, não existe regulamentação oficial direcionada a publicidade de jogos para menores ou fiscalização de que a documentação cadastrada não seja de parentes maiores de idade, como também explicitado na reportagem da Agência Mural. 

DE OLHO NO PERIGO

Na pesquisa de perfil de apostadores do Panorama Mobile Time/Opinion Box, publicada em maio de 2023, foi identificado que o padrão médio dos jogadores é homem, jovem e de baixa renda. Na análise de faixa etária, 36% dos indivíduos no grupo de 16 a 29 anos já apostaram em plataformas de apostas esportivas e dos mais de dois mil entrevistados, 30% são das classes D e E.

O risco das apostas esportivas passa a existir no momento em que ela deixa de ser feita por entretenimento e começa a simbolizar algo vital, como a principal fonte de renda do indivíduo ou o lugar em que a fonte de renda é “investida” - que gera a sensação falsa de uma possibilidade segura de lucro. Em primeiro plano, porque as estatísticas esportivas não são baseadas em padrões fixos, mas probabilidades, como tendências históricas e estatísticas defensivas de um time, que podem variar a cada jogo. E em segundo plano, pelo aumento dos casos de manipulação de partidas de futebol, em que, segundo os dados da Sportradar, o futebol mundial registrou um aumento de 34% no número de partidas suspeitas, apenas em 2022.

Em terceiro plano, a psicóloga e analista Adriana Munford explica que o vício, ou seja, a incapacidade de deixar um padrão de lado, pela perda de autocontrole sobre a situação, é o que caracteriza a compulsão de jogadores que não conseguem deixar de apostar, mesmo depois da frustração da perda, inclusive com frequências variadas. 

 

Mas Adriana não é a única que alerta sobre os perigos de começar a apostar e transformar o jogo em uma parte essencial da vida. Mateus Haidar, depois de sobreviver às dificuldades de largar de vez o mundo das apostas, começou a criar conteúdos no TikTok e outras redes sociais para ajudar quem está endividado ou em situação extrema, correndo riscos de vida. 

“Todos os dias recebo mensagens de pessoas que estão flertando com o suicídio, fora os casos de suicídio consumados que aparecem na mídia, aparentemente o jogo patológico será um enorme problema de saúde pública muito em breve”. 

No fim, os atingidos pela expectativa da renda extra e lucro gerado pela efêmera probabilidade de ganhar algo que nunca tiveram, são os que nasceram na falta. Mais comum do que se imagina, é pensar que absolutamente nada pode nascer de uma falta, de algo que não existe. Mas foi ainda nessa vida que Zé Braz construiu a sua nova vida, antes de perder tudo. “Conheci minha ex-mulher, casamos, montamos uma casinha ali na Habitação [imóvel ofertado a pessoas de baixa renda em São Paulo] e eu segurei um pouco essa vida né [de apostas], arrumei um empreguinho registrado e comecei a pagar o INSS, mas a bebida continuou [vício], não deu pra parar não”. 

Zé Braz primeiro perdeu o amor, depois o emprego, uma parte do dinheiro, mas ficou com a casa, que era seu único abrigo, mesmo que só tivesse o físico. Mas não foi suficiente para preencher o vazio de não mais falar com a filha e dividir conselhos com alguém. Zé começou a refletir o semblante dos seus pais. “Fui e voltei pra vida do cão” o seguro desemprego virou jogo e antes de voltar para os bicos e tentar reconstruir a sua vida, fez lembranças no bar da Dona Lina. O bingo de Internet era mais fácil, bastava sacar 50 ou 100 cartelas de uma vez, com números prontos, para ver quem ganhou dessa vez. 

“Deixava todo o dinheiro do auxílio lá no bingo, na cachaça, até que não me deixaram jogar mais, a Dona Lina disse que não ia vender mais pra mim. Hoje eu vivo de bico de pintor, passo textura, grafiato e pequenos reparos, tô vivendo de aluguel porque vendi a casa na habitação e o dinheiro foi todo pra mulher, cachaça e jogo".