Um direito humano não assegurado: o brasileiro sente sede

Há 13 anos, a ONU declarava a água como um direito humano universal, no Brasil, 15,8% da população não tem livre acesso a esse recurso
por
Maria Elisa Tauil
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18/09/2023 - 12h

O acesso à água potável e saneamento básico é um direito essencial, fundamental e universal, vital à vida humana com dignidade e reconhecido pela ONU como “condição para o gozo pleno da vida e dos demais direitos humanos” (Resolução 64/A/RES/64/292, de 28.07.2010). Mesmo assim, Mary Maia agricultora e moradora da Chapada do Apodi, divisa do Ceará e Rio Grande do Norte, vive com duas cisternas  de água, reservatório que faz a captação e armazenamento da água da chuva, instaladas em seu quintal.

Assim como Mary, os moradores da região enfrentam o semiárido brasileiro com as mesmas condições. Eles fazem parte dos 15,8% da população, aproximadamente 33 milhões de indivíduos, que não têm livre acesso à água potável no Brasil, conforme informações recentes do SNIS (Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento).

Apesar de enfrentarem a precariedade hídrica, os habitantes do município de Tabuleiro do Norte, localizado na Chapada do Apodi, acordam todos os dias sob a segunda maior reserva de água subterrânea do estado, a Bacia Potiguar. Enquanto o agronegócio usufrui do direito universal para plantar algodão e soja, com a falta de acesso ao aquífero e nenhuma assistência do governo para mudar a situação, a única opção de Mary é utilizar duas cisternas para uso próprio e irrigação da sua pequena plantação.

“Nesse quintal não tem água diariamente”, expõe a agricultora ao relatar as dificuldades de morar no local. “Não tem esse ditado, água é vida? E água é vida mesmo, o que a gente pode fazer sem água? Pra gente aguar um pé de planta falta, porque eu só tenho duas cisternas com água. Se aqui tivesse um poço eu tinha tudo isso aqui (quintal) cheio de fruta.”

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Acerola do quintal produtivo de Mary Maia. Foto: Maria Elisa Tauil

Assim como tantos outros pequenos agricultores, a vida de Mary é o seu quintal produtivo. Com a renda da família estando diretamente ligada à agricultura, ela diz que se vê refém da disponibilidade hídrica. “Quando tem água a gente consegue mais coisa, quando não tem as bichinhas (plantação) murcham e morrem,” expõe.

Também moradora da Chapada, a cozinheira Joana Bezerra reforça a denúncia da falta de água. “A nossa luta é a água, que não tem. A maioria não tem condições de furar poços e quem tem condições de fazer isso pela gente não faz, não resolvem o problema. As empresas têm água à vontade, por que nós não tem?”

Na casa onde Joana mora com o esposo, o acesso a água só é possível através de um poço de água no quintal. Consciente do seu privilégio por ter um fácil acesso ao recurso, a agricultora sabe que nem todos têm as mesmas condições. “O que poderia mudar é se tivesse água o bastante, o suficiente para todos, não é só para mim porque eu tenho um pocinho aqui no meu quintal, mas é pouca coisa. A gente quer é coisa pra comunidade, vizinhos, irmãos. É isso. É água.”

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Poço de água não tratada no quintal de Joana Bezerra. Foto: Maria Elisa Tauil

Conhecida como a alma do agronegócio do Ceará e um dos principais focos da fruticultura do Brasil, a Chapada do Apodi é vista, segundo o mapeamento feito pela Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE), como um paraíso natural devido ao seu solo fértil e grande disponibilidade de água, fator que não passou despercebido pela política agrária brasileira.

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Chapada do Apodi. Foto: Maria Elisa Tauil

Em 1987, com a intenção de incentivar o agronegócio de frutas para exportação, através do Departamento Nacional de Obras Contra a Seca (DNOCS), o Estado brasileiro construiu um perímetro irrigado na região. Na teoria, isso poderia representar uma grande mudança para os moradores da Chapada, mas na prática a função dessa água nunca foi cumprir os direitos humanos.

Aline Maia, técnica da Cáritas de Limoeiro do Norte, explica as complicações que os agricultores enfrentam. “Essa é uma região que envolve muitas complexidades, estamos num território que a gente tem água e as comunidades não acessam essa água. Historicamente elas resistem aqui buscando alternativas e estratégias.”

“A grande dificuldade é a própria falta de apoio do Estado. Você não tem água. Nós estamos debaixo da segunda maior reserva hídrica subterrânea, que é o aquífero Jandaíra-Açu, a segunda maior reserva de água subterrânea no Estado do Ceará, e as famílias daqui não têm acesso a essa água. O acesso é por meio de carro pipa. A agroecologia precisa de água, como é que você vai viver no semiárido, produzir como camponeses e camponesas se você não tem água”, crítica.

“A falta de água tem sido um dos principais desafios, injustiça hídrica como a gente costuma dizer.”

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Agricultora moradora da Chapada do Apodi segurando uma batata doce. Foto: Maria Elisa Tauil

ACESSO A ÁGUA NO BRASIL

A precariedade hídrica enfrentada pelos moradores da Chapado do Apodi, é um caso entre tantos outros da realidade brasileira que mostram a fragilidade no cumprimento da resolução da Organização das Nações Unidas (ONU), assinada em 28 de julho de 2010. Apesar de apresentar uma grande disponibilidade hídrica, a distribuição no Brasil é desigual.

Segundo o estudo “Avanços do Novo Marco Legal do Saneamento Básico no Brasil - 2023 (SNIS 2021)” realizado pelo Instituto Trata Brasil, divulgado em 2023, em colaboração com a GO Associados, a maior parte da população que não tem acesso a água potável está concentrada nas regiões Norte e Nordeste do país, assim como nas periferias das grandes cidades. Os dados comparam a disponibilidade hídrica das cidades do país, onde 99,07% dos brasileiros das 20 melhores cidades têm acesso a redes de água potável, enquanto somente 82,52% da população das 20 piores têm esse serviço.

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Fonte: Brasil de Fato

Além disso, durante o levantamento de dados, foi constatado que mais de 1.100 dos 5.568 municípios do país averiguados, não apresentaram a documentação imposta pela legislação que comprova a capacidade econômico-financeira das empresas de abastecimento de água potável e esgotamento sanitário de cumprir as exigências legislativas.

Ao divulgar os resultados da pesquisa, a presidente do Instituto Trata Brasil, Luana Siewert Pretto, devido à disparidade de investimento em saneamento básico, apontou a existência de dois “Brasis”. “Se a gente for avaliar a região Sudeste, há uma média de investimento bastante grande, e mais de 90% da população já tem acesso a água”, declara. 

“Falta priorização dos governantes em relação ao tema do saneamento básico. Às vezes a gente ainda vê a política de que obra embaixo da terra não é interessante”, afirma Luana Pretto. 

Outro fator agravante na distribuição de água no país é a precariedade na gestão hídrica. De acordo com a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO), a irrigação corresponde ao consumo de 72%, à medida que as populações urbanas e rurais representam 10%, conforme um balanço sobre o consumo brasileiro feito em 2021. 

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Fonte: Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO)

Ainda conforme a FAO, o agronegócio é o setor que mais precisa de medidas de redução do consumo, uma vez que aproximadamente 60% de toda água usada na irrigação é desperdiçada. Pesquisas do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária no Mato Grosso (Incra), apontam que um único pivô, sistema muito utilizado por grandes empresas na agricultura irrigada, chega a desperdiçar um milhão de litros por hectare (10 mil metros quadrados) em somente um dia. 

Durante a 21ª Semana Mundial da Água, Achim Steiner, chefe do Programa de Meio Ambiente das Nações Unidas, informou que, sem gerar nenhum impacto, somente 10% da atividade de irrigação mundial é necessária para garantir o abastecimento de toda população. “Sistemas agrícolas que respeitam os ecossistemas não apenas provêm comida, fibra e produtos animais, eles também geram serviços como mitigação de enchentes, recarga de aquíferos, controle de erosão e são habitats para plantas, aves, peixes e outras espécies”, disse. 

UM DIREITO HUMANO FUNDAMENTAL E UNIVERSAL  

Há treze anos atrás, a ONU instituiu que o livre acesso à água potável e o saneamento básico é um dos direitos humanos fundamentais, o Comitê das Nações Unidas para os Direitos Econômicos afirma que: “O direito humano à água prevê que todos tenham água suficiente, segura, aceitável, fisicamente acessível e a preços razoáveis para usos pessoais e domésticos.” 

Mesmo o Estado brasileiro não assegurando a acessibilidade hídrica universal da população, existem medidas que procuram diminuir drasticamente o número de pessoas sem saneamento básico no país. O novo Marco Legal do Saneamento, versão atualizada da Lei nº11.445/2007, tem o propósito de atender 99% dos brasileiros com água potável e 90% com coleta e tratamento de esgotos até o final de 2023.  

Para João Amorim, professor da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), é necessária uma política pública para melhorar a distribuição hídrica no Brasil. “Tem que haver uma política pública permanente, perene, de acesso descentralizado de acesso à água (distribuição por meio de sistemas de abastecimento), saneamento, tratamento. Uma política pública ampla com recursos financeiros garantidos no Orçamento Geral da União que deve ser acompanhada de uma mudança de prática dos gestores locais e da participação social, cobrando, acompanhando, orientando, exigindo água pra todas as famílias urbanas e rurais, de todos os biomas e territórios,” alega.  

“Água é vida, alimento, soberania, segurança alimentar, autonomia, liberdade. 

Água pra plantar, cuidar, colher, cozinhar, beneficiar alimentos e consumir. 

Água pra criar animais, produzir ração, sementes, comida farta, sadia e diversificada.”  

 

Esta reportagem foi produzida como atividade extensionista do curso de Jornalismo da PUC-SP.