A vinda de cada vez mais treinadores estrangeiros para o Brasil está representando um processo único na história do futebol nacional. Além dos profissionais sul-americanos, que já eram bem populares entre os times locais, muitos técnicos portugueses estão se inserindo no mercado brasileiro, configurando um cenário mais diversificado e oferecendo novas perspectivas para o futebol nacional.
Essa tendência é recente e tem origem no sucesso do técnico português Jorge Jesus no Flamengo, com cinco títulos conquistados entre os anos de 2019 e 2020. Para efeito de comparação, na 38ª rodada do Campeonato Brasileiro de 2012 não havia nenhum treinador estrangeiro entre os 20 times da Série A. Já em 2022, o campeonato deve iniciar com nove treinadores estrangeiros na primeira divisão, recorde histórico, sendo seis deles contratados nessa temporada, além de um treinador estrangeiro na segunda divisão, no Cruzeiro. Quanto às nacionalidades, portugueses e argentinos se destacam com quatro e três treinadores de cada país, respectivamente.
Para Leo Samaja, coordenador do curso para formação de treinadores da ATFA (Associação de treinadores do futebol argentino), o diferencial dos treinadores estrangeiros, especialmente os argentinos, está na formação: “Desde o ensino fundamental e médio, que é forte e rigoroso, os treinadores chegam à etapa formativa nos cursos de treinador com uma bagagem formativa e cultural muito consistente, claramente orientados ao estudo e entendendo este processo como prioritário. Uma vez nos cursos de treinador, o processo completo entrega ferramentas que são essenciais para o entendimento e posterior desempenho na profissão”. Samaja ainda compara o rigor da formação de treinadores na Argentina ao rigor exigido em outras profissões, como a advocacia e a medicina, dizendo que a formação de um treinador não pode ser encarada como “reuniões de café”.
Na visão de Alan Dotti, treinador do time sub-20 da Portuguesa, o diferencial dos profissionais estrangeiros está na forma como seus trabalhos são avaliados. “Não vejo muita diferença (na forma) de trabalho e sim uma maior estabilidade para os estrangeiros em comparação com os brasileiros, com ajuda da mídia que valoriza mais o que vem de fora”, diz Dotti, que também faz uma ressalva quanto às condições encontradas pelos treinadores estrangeiros usados como exemplo de sucesso: todos treinaram clubes grandes, com bons jogadores e encontraram boa estrutura física de trabalho.
Com quase 20 anos de carreira, o treinador português Eduardo Moreira concorda com Dotti que não há diferença na forma de trabalhar de estrangeiros e brasileiros, mas cita outro aspecto fundamental na formação de treinadores e que também tem influência direta nos métodos de cada profissional: o contexto social. “Claro que cada treinador é fruto da sociedade onde foi criado e viveu, logo a sua abordagem em relação a diferentes questões será sempre dependente dessas vivências. Se as nossas formações enquanto povo e cultura são diferentes, nós seremos diferentes e não tem mal nenhum nisso. Para ser um treinador de sucesso, é necessário que saibamos o que o contexto precisa. Isso exige uma preparação que vai além do que é só o jogo de futebol.”, afirma Moreira.
No Brasil, a formação de treinadores é oferecida pela CBF Academy, instituição educacional da CBF criada em 2016, mas que oferece cursos de treinadores desde 2009, ou seja, há 12 anos. Já na ATFA, são mais de 50 anos com o mesmo processo formativo, adaptado, corrigido e reorganizado com o passar do tempo, na tentativa de oferecer a melhor formação para seus alunos. “O processo pedagógico, o aperfeiçoamento das técnicas de estudo, leva tempo em amadurecer. Assim, com a transmissão e assimilação do conhecimento, pois o tempo da duração dos cursos faz total diferença. Não podemos pretender ensinar nem aprender em 10 dias o que é aprendido em um ano”, diz Samaja.
MODERNOS VS ULTRAPASSADOS
Com a chegada dos treinadores estrangeiros ao Brasil, uma parcela da imprensa e dos torcedores passaram a resumir o movimento do mercado com a frase “os nossos profissionais estão ultrapassados”. Tanto Alan como Leo são unânimes sobre o assunto: essa afirmação é desrespeitosa com os profissionais do futebol. “Os treinadores brasileiros estão entre os que mais trabalham. O problema está nos dirigentes, que não oferecem jogadores de qualidade e nem tempo de trabalho para os treinadores brasileiros”, diz o treinador da Portuguesa.
Samaja levanta ainda alguns aspectos que poderiam ser discutidos pela imprensa na tentativa de melhorar a formação dos treinadores brasileiros, fugindo daquilo que ele considera uma desqualificação aos profissionais do país: “O que deve ser discutido é o acesso e a qualidade da formação no país, a exigência no processo formativo, se existem filtros ou facilidades para uns, assim como barreiras ou proibições para outros. Devemos primeiro entender e definir a prioridade que tem a formação na profissão para, posteriormente, exigir que a rigorosidade formativa esteja à altura dos maiores centros formativos do mundo (Argentina, Espanha e Portugal, por exemplo)”.
O coordenador da ATFA ainda aponta sua preocupação com a etiqueta colocada nos profissionais estrangeiros que vêm trabalhar no Brasil: “No país se fala dos treinadores brasileiros e dos gringos. Em nenhuma parte do mundo existe essa discussão, muito menos essa etiqueta que se aproxima muito de um comportamento xenófobo. Imaginemos se na China, na Tailândia, ou antigamente nos países árabes, essa onda do estrangeiro fosse voltada contra os treinadores brasileiros que têm maior participação nesses mercados”.
Em Portugal, como destaca Moreira, há uma visão de aprendizado mútuo com o intercâmbio entre treinadores brasileiros e portugueses: “Eu não vejo um português chegar ao Brasil como um estrangeiro e vice-versa. Nós temos mais coisas que nos aproximam do que nos afastam, simplesmente estamos a olhar de uma outra perspectiva. O nosso jogo é diferente, o nosso treino é diferente, a nossa gestão é diferente, mas a competência não”.
O FUTURO
Com o mercado mais aberto do que nunca, a pergunta que se faz no meio do futebol é se essa tendência veio para ficar ou se é algo passageiro. Para Dotti, trata-se de um momento que o futebol atravessa e defende mais oportunidades para jovens treinadores brasileiros: “Os jovens promissores poderiam ter mais chances de trabalho, mas infelizmente, apenas seu trabalho não é suficiente para garantir essas oportunidades em muitas das vezes no nosso futebol”.
Por fim, Samaja prevê dificuldades para os profissionais brasileiros do mercado caso não haja uma mudança na maneira de encarar os novos conhecimentos existentes no futebol do exterior e que tem chegado ao nosso país. “No Brasil se percebe uma onda de pretender negar o conhecimento de fora, fechar as portas e blindar o mercado local fazendo de conta que o de fora não serve e aqui é o berço do futebol. Até não mudar essa visão, até não aceitarem e reconhecerem que lá fora também existem alternativas para agregar na evolução, esse nojo pelo estrangeiro acabará só isolando o profissional brasileiro do mercado internacional, assim como da qualidade do mercado local”.