As torcidas organizadas são grupos de apaixonados pelo futebol que buscam formas de apoiar sua equipe em conjunto. Porém, a união dos fanáticos vai além da esfera futebolística.
Os coletivos historicamente envolveram-se em disputas relacionadas a causas sociais, como a luta contra o fascismo e a favor da democracia. Afinal, o esporte pode servir como meio de expor esses conflitos e de unir as pessoas em nome de uma causa.
Segundo o coordenador do curso de ciências sociais da PUC-SP e autor do livro “A democracia corinthiana: práticas de liberdade no futebol brasileiro”, José Paulo Florenzano, não é simples definir o fascismo e “hoje se usa muito essa expressão e de uma maneira às vezes excessiva e sem um rigor científico acadêmico”. Para o professor, “você tem a experiência do fascismo clássico na Itália, sobretudo, e depois na Alemanha que se define pela maneira como o estado é capturado por um projeto de poder, autoritário, hierárquico, centrado numa figura populista - isso fica muito bem exemplificado na figura do Mussolini - que procura estabelecer uma relação direta com a sociedade, portanto eliminando as instituições políticas e reprimindo as associações da sociedade”. “Ele se caracteriza sobretudo pela maneira violenta como se impõem na sociedade. Com perseguições, ameaças, torturas, eliminações físicas dos opositores”, conclui Florenzano.
O movimento fascista utilizou o esporte como propaganda em vários momentos da história. Na Alemanha, o Bayern de Munique carregava a suástica em seu emblema durante o governo de Hitler e na Itália a Lazio foi usada por Mussolini da mesma forma - ainda hoje há torcidas abertamente fascistas, mas o clube busca se afastar desse rótulo. Além disso, sintomas desse fascismo, foram sentidos na virada do século, com manifestações racistas e xenofóbicas constantes nos jogos do campeonato italiano. Algo que ainda é presente em estádios do mundo inteiro.
Assim como houve apoiadores, o esporte também participou ativamente na luta contra o fascismo. Durante a segunda guerra mundial, a Ucrânia foi invadida pelos nazistas e logo o futebol parou no país. Jogadores de algumas equipes acabaram trabalhando numa padaria e formaram o F.C. Start como forma de continuar jogando. Eles começaram a acumular vitórias e logo chamou a atenção dos alemães. Eles foram obrigados a jogar duas vezes contra um time formado por membros da força aérea germânica. Com duas vitórias (a segunda partida ficou conhecida como jogo da morte) aquela equipe é lembrada até os dias atuais como símbolo da luta contra o fascismo.
No Brasil, a democracia corintiana foi o movimento que enfrentou a ditadura militar durante os anos 80. O projeto durou dois anos e apoiou o direito de voto para presidente no país, além de modificar a gestão do clube (todo funcionário podia votar sobre decisões do time – com o mesmo peso). José Paulo comentou sobre o significado da democracia corinthiana: “Ter ao lado das forças que combatiam o regime militar uma equipe que simbolicamente, talvez seja a mais importante do país, um clube popular com visibilidade, projeção, engajamento dos atletas no movimento pelas diretas já, amplia a percepção social do quanto a democracia é importante, a ideia de que a democracia não é algo abstrato que está no parlamento, na universidade, no livro dos intelectuais”, foi de uma, “importância extraordinária, um capítulo marcante da história da redemocratização do país”.
O movimento antifascista atualmente pode ser visto em clubes amadores. Esse movimento só cresce, com times e ligas em diversos estados do Brasil. Só em São Paulo são 15 times que se consideram antifascistas. Tais agremiações disputam campeonatos e buscam trazer para a “cena” futebolística ideais contrários à intolerância e autoritarismo. Danilo Heitor, fundador do time antifa “Autônomos”, falou sobre a importância do surgimento desses clubes: “Acredito que no momento que o Brasil atravessa, com o fascismo crescendo nos últimos anos, (jogar em um time antifa) vai para além da questão de tentar construir o futebol da forma como você enxerga o mundo. Mas sim de marcar posição em uma disputa política que se coloca no país”.
Diferente do que acontece nos campos de várzea, o futebol profissional deixa a desejar quando o assunto envolve causas sociais. Clubes e jogadores evitam entrar em assuntos referentes a esse tipo de disputa. É o que afirma o cientista social, “Os clubes estão muito aquém dessa função social [...] No que diz respeito ao combate a essa cultura da intolerância que envolve: xenofobia, racismo, sexismo, homofobia, intolerância religiosa e as múltiplas faces dessa cultura, há uma omissão, para não dizer cumplicidade”. Na visão dele os times deveriam, “promover esse debate nas torcidas e tentar esclarecê-las a respeito do que significa replicar a cultura da intolerância, que pode de repente se voltar contra elas próprias, que estão sendo instrumentalizadas por essa cultura”.
O Bahia tem se posicionado frente a essa realidade. O time nordestino tornou-se pioneiro ao ter um Núcleo de Ações Afirmativas. O projeto está focado em tratar de temas pouco debatidos no ambiente do futebol, como homofobia, racismo, machismo, entre outros.
Mesmo com a indiferença apresentada por muitas agremiações, as torcidas organizadas têm mostrado atitude para lutar pelas causas sociais. Em 2020, os fanáticos deixaram a rivalidade de lado para protestar contra a possibilidade de um novo golpe militar. Renato Daniel, membro da Palmeiras Antifascista falou sobre a criação desse protesto: “o ato das torcidas foi muito simbólico, porque nós vimos alguns grupos de torcedores se organizando para compor altos de direita e pessoas completamente ligadas com ideias de extrema-direita, neonazistas, carecas e afins. A gente viu essa galera se organizando e falamos ‘Mano temos que dar uma resposta’ se eles estão lá usando a camisa do nosso clube, se eles estão se organizando, a gente vai dar a cara também e vai organizar algo maior”. O protesto aconteceu em São Paulo e em mais 15 cidades em maio de 2020. A ação uniu torcidas organizadas de diferentes times em prol da democracia e para dissolver uma manifestação de apoiadores do presidente Bolsonaro que pediam a intervenção militar no país.
O futebol surgiu como prática esportiva e em pouco tempo se tornou entretenimento. Porém, a história e a visibilidade que as instituições esportivas possuem mostra a importância do esporte como meio de combate a intolerância. "O futebol é uma ferramenta política também [...] olhar o futebol como uma ferramenta possível de construir outras relações sociais, construir outras didáticas populares" conclui Danilo.