Torcidas organizadas lutam contra o fascismo

Em um contexto político instável, o futebol tem papel fundamental na defesa da democracia
por
Gustavo Pereira
Lucas G. Azevedo
|
08/06/2022 - 12h

 

As torcidas organizadas são grupos de apaixonados pelo futebol que buscam formas de apoiar sua equipe em conjunto. Porém, a união dos fanáticos vai além da esfera futebolística. 

Os coletivos historicamente envolveram-se em disputas relacionadas a causas sociais, como a luta contra o fascismo e a favor da democracia. Afinal, o esporte pode servir como meio de expor esses conflitos e de unir as pessoas em nome de uma causa.

Segundo o coordenador do curso de ciências sociais da PUC-SP e autor do livro “A democracia corinthiana: práticas de liberdade no futebol brasileiro”, José Paulo Florenzano, não é simples definir o fascismo e “hoje se usa muito essa expressão e de uma maneira às vezes excessiva e sem um rigor científico acadêmico”. Para o professor, “você tem a experiência do fascismo clássico na Itália, sobretudo, e depois na Alemanha que se define pela maneira como o estado é capturado por um projeto de poder, autoritário, hierárquico, centrado numa figura populista - isso fica muito bem exemplificado na figura do Mussolini - que procura estabelecer uma relação direta com a sociedade, portanto eliminando as instituições políticas e reprimindo as associações da sociedade”. “Ele se caracteriza sobretudo pela maneira violenta como se impõem na sociedade. Com perseguições, ameaças, torturas, eliminações físicas dos opositores”, conclui Florenzano.

O movimento fascista utilizou o esporte como propaganda em vários momentos da história. Na Alemanha, o Bayern de Munique carregava a suástica em seu emblema durante o governo de Hitler e na Itália a Lazio foi usada por Mussolini da mesma forma - ainda hoje há torcidas abertamente fascistas, mas o clube busca se afastar desse rótulo. Além disso, sintomas desse fascismo, foram sentidos na virada do século, com manifestações racistas e xenofóbicas constantes nos jogos do campeonato italiano. Algo que ainda é presente em estádios do mundo inteiro.

Assim como houve apoiadores, o esporte também participou ativamente na luta contra o fascismo. Durante a segunda guerra mundial, a Ucrânia foi invadida pelos nazistas e logo o futebol parou no país. Jogadores de algumas equipes acabaram trabalhando numa padaria e formaram o F.C. Start como forma de continuar jogando. Eles começaram a acumular vitórias e logo chamou a atenção dos alemães. Eles foram obrigados a jogar duas vezes contra um time formado por membros da força aérea germânica. Com duas vitórias (a segunda partida ficou conhecida como jogo da morte) aquela equipe é lembrada até os dias atuais como símbolo da luta contra o fascismo.

No Brasil, a democracia corintiana foi o movimento que enfrentou a ditadura militar durante os anos 80. O projeto durou dois anos e apoiou o direito de voto para presidente no país, além de modificar a gestão do clube (todo funcionário podia votar sobre decisões do time – com o mesmo peso). José Paulo comentou sobre o significado da democracia corinthiana: “Ter ao lado das forças que combatiam o regime militar uma equipe que simbolicamente, talvez seja a mais importante do país, um clube popular com visibilidade, projeção, engajamento dos atletas no movimento pelas diretas já, amplia a percepção social do quanto a democracia é importante, a ideia de que a democracia não é algo abstrato que está no parlamento, na universidade, no livro dos intelectuais”, foi de uma, “importância extraordinária, um capítulo marcante da história da redemocratização do país”.

Sócrates, um dos líderes do movimento da “democracia corinthiana” com o punho cerrado. - Divulgação/Twitter
Sócrates, um dos líderes do movimento da “democracia corinthiana” com o punho cerrado. Foto: Divulgação/Twitter

O movimento antifascista atualmente pode ser visto em clubes amadores. Esse movimento só cresce, com times e ligas em diversos estados do Brasil. Só em São Paulo são 15 times que se consideram antifascistas. Tais agremiações disputam campeonatos e buscam trazer para a “cena” futebolística ideais contrários à intolerância e autoritarismo. Danilo Heitor, fundador do time antifa “Autônomos”, falou sobre a importância do surgimento desses clubes: “Acredito que no momento que o Brasil atravessa, com o fascismo crescendo nos últimos anos, (jogar em um time antifa) vai para além da questão de tentar construir o futebol da forma como você enxerga o mundo. Mas sim de marcar posição em uma disputa política que se coloca no país”.

Diferente do que acontece nos campos de várzea, o futebol profissional deixa a desejar quando o assunto envolve causas sociais. Clubes e jogadores evitam entrar em assuntos referentes a esse tipo de disputa. É o que afirma o cientista social, “Os clubes estão muito aquém dessa função social [...] No que diz respeito ao combate a essa cultura da intolerância que envolve: xenofobia, racismo, sexismo, homofobia, intolerância religiosa e as múltiplas faces dessa cultura, há uma omissão, para não dizer cumplicidade”. Na visão dele os times deveriam, “promover esse debate nas torcidas e tentar esclarecê-las a respeito do que significa replicar a cultura da intolerância, que pode de repente se voltar contra elas próprias, que estão sendo instrumentalizadas por essa cultura”.

O Bahia tem se posicionado frente a essa realidade. O time nordestino tornou-se pioneiro ao ter um Núcleo de Ações Afirmativas. O projeto está focado em tratar de temas pouco debatidos no ambiente do futebol, como homofobia, racismo, machismo, entre outros.

Mesmo com a indiferença apresentada por muitas agremiações, as torcidas organizadas têm mostrado atitude para lutar pelas causas sociais. Em 2020, os fanáticos deixaram a rivalidade de lado para protestar contra a possibilidade de um novo golpe militar. Renato Daniel, membro da Palmeiras Antifascista falou sobre a criação desse protesto: “o ato das torcidas foi muito simbólico, porque nós vimos alguns grupos de torcedores se organizando para compor altos de direita e pessoas completamente ligadas com ideias de extrema-direita, neonazistas, carecas e afins. A gente viu essa galera se organizando e falamos ‘Mano temos que dar uma resposta’ se eles estão lá usando a camisa do nosso clube, se eles estão se organizando, a gente vai dar a cara também e vai organizar algo maior”. O protesto aconteceu em São Paulo e em mais 15 cidades em maio de 2020. A ação uniu torcidas organizadas de diferentes times em prol da democracia e para dissolver uma manifestação de apoiadores do presidente Bolsonaro que pediam a intervenção militar no país. 

Torcedores do Palmeiras antifascista no ato das torcidas. Foto: Acervo pessoal/ Renato Daniel
Torcedores do Palmeiras antifascista no ato das torcidas. Foto: Acervo pessoal/ Renato Daniel

O futebol surgiu como prática esportiva e em pouco tempo se tornou entretenimento. Porém, a história e a visibilidade que as instituições esportivas possuem mostra a importância do esporte como meio de combate a intolerância. "O futebol é uma ferramenta política também [...] olhar o futebol como uma ferramenta possível de construir outras relações sociais, construir outras didáticas populares" conclui Danilo.