Há três meses as ruas de Israel vem sendo preenchidas por manifestações, que chegaram a reunir mais de 160 mil pessoas, contrárias à reforma do judiciário proposta pelo primeiro-ministro Benjamin Netanyahu. O que inicialmente parecia somente revelar o uso de mecanismos políticos para a manutenção irregular do poder do primeiro-ministro, coloca em pauta no cenário mundial a luta identitária dentro do país e seus níveis desiguais de força.
Desde 2019 Israel enfrenta uma crise política sem precedentes. Com cinco governos nos últimos quatro anos, o país apresenta dificuldades para se organizar. As últimas eleições em novembro de 2022, que reelegeram Netanyahu, conhecido também por Bibi, acalmaram a mídia e o público, mas no início de 2023 o governo propôs uma reforma jurídica que gerou revolta.
A reforma visa limitar o poder da Suprema Corte de Israel, aumentando as possibilidades de ação da Assembleia legislativa do país, o Knesset. Para muitos, essa medida ameaça a democracia israelense.
Para o professor de Relações Internacionais da PUC-SP, Bruno Huberman, por trás da reforma do judiciário existe a tentativa de se "minorar" o principal contraponto ao parlamentarismo presente no país.
Ameaça à democracia
Caso a reforma seja aprovada, o Suprema Corte deIsrael ficará impedida de revisar ou vetar leis do parlamento que, por sua vez, poderá alterar decisões do tribunal e ganhará mais relevância na hora de nomear os juízes do país, inclusive os da Suprema Corte. A problemática por trás dessa reforma é que a Suprema Corte é responsável por impor limites ao poder legislativo, aspecto substancial para a sobrevivência da democracia israelense. Logo, se não houver ninguém para dividir o poder com o Knesset, o país ficará em vias de se tornar uma ditadura.
Dentro desse panorama, a reforma do judiciário na política israelense serve como uma clara exemplificação de como a democracia pode enfraquecer aos poucos, inclusive, a partir do uso de mecanismos legais para a manutenção, forçada, de políticos no poder. E nesse sentido, o ponto de ruptura dentro da democracia em Israel aconteceria justamente por meio da “diminuição dos instrumentos democráticos, como os de freios e contrapesos, existentes para a população israelense judaica”, elucida Huberman.
Início da crise
A última eleição do Knesset aconteceu em novembro de 2022. Ela trouxe de volta Netanyahu ao poder e inaugurou seu mandato apontando políticos de extrema-direita para alguns dos cargos mais importantes do gabinete, incluindo ministro das Relações Exteriores, ministro da Defesa e ministro da Justiça.
Essa configuração facilitou a criação da reforma judicial, protagonista da atual crise política. A reforma judicial visa implementar medidas para fortalecer o poder do Knesset, diminuindo a autoridade da Suprema Corte.
A opinião pública entende que o ministro está se aproveitando da situação para fugir das acusações de corrupção, mas seus aliados o defendem dizendo que Bibi está apenas representando o povo, que deu seu aval nas urnas ao elegê-lo.
Israelense X Palestinos
Um dos pontos críticos deflagrados após o início das manifestações e a consequente visibilidade da cobertura midiática sobre o conflito vivido no país é acerca da crise identitária que se arrasta a anos em Israel. Muito embora a “visão ocidental” acredite que Israel seja uma democracia, existe internamente uma questão central sobre um Estado que foi historicamente “construído pelos israelenses judeus para os israelenses judeus”, alega Huberman.
Para a brasileira Vera Metzner, que recentemente se tornou cidadã israelense, os resultados da última eleição parlamentar ilustram a polarização ideológica presente e afirma que é contrária às decisões do ministro. “O que está acontecendo é bem assustador, eu participo dos protestos pois não me sinto representada por esse governo e suas decisões. As medidas de Bibi me agridem, agridem as pessoas em volta de mim, os palestinos e os direitos humanos. Eu me sinto completamente ameaçada e desrespeitada”.
E o sentimento compartilhado por Metzner é comum há muito tempo a parcela da população palestina. O professor Huberman pontua que essa desigualdade governamental está inserida no país há anos, se sobrepondo diretamente a um apartheid etnico, no qual existe uma democracia para os israelenses judeus e “um estado de exceção, colonial, segregacionista para os palestinos, em diferentes níveis”.
Durante os mandatos
Linha do tempo dos principais momentos do primeiro-ministro na política- Infográfico: Carolina Rouchou
Em 2016, as acusações de corrupção contra Netanyahu desencadearam a perda da confiança de seus eleitores e de apoiadores políticos. Já em 2018, o primeiro-ministro arriscou sua aliança com o líder do partido Yisrael Beiteinu e então ministro de defesa, Avigdor Lieberman.
Um projeto de lei que visava tornar obrigatória a participação de judeus Haredi (judeus ultra-ortodoxos dedicados aos estudos dos textos sagrados) nas forças armadas de Israel deu início às divergências. O premier se opôs, pois buscava fortalecer novas alianças com partidos religiosos de ultra-direita, mas essa decisão afastou Lieberman.
Este projeto continuou sendo razão para polêmicas e acabou dissolvendo a estrutura do Knesset eleito. O que seguiu foram repetidas tentativas de estabelecer coligações fortes o suficiente para eleger um primeiro-ministro, todas falhas.
Netanyahu não estava disposto a abrir mão de seu poder. Nos últimos quatro anos fez o que pôde para barrar decisões que pudessem removê-lo do jogo político e em troca, arruinou a estabilidade política e econômica de Israel.
Revogação
Os protestos contra a reforma judicial, por hora, foram suficientes para Bibi remarcar a data de decisão para depois do recesso de Pessach, feriado judaico que se encerra dia 13 de Abril.
Apesar de ter ganhado tempo, isso não expandiu o leque de opções de Netanyahu. Visto que, seja no início ou metade do ano, o primeiro-ministro terá que pôr em prática suas habilidades de negociação para evitar mais uma dissolução do Knesset.
Se negar a reforma, Bibi perderá muitos aliados em sua coligação, decisão que pode ser fatal para seu governo perder a maioria na Assembleia. Se aprovado, irá intensificar a crise social, política e econômica em que o país se encontra. Ainda assim, o premiê já deixou claro que não irá desistir.