Por Mateus Carrilho
Nas últimas noites, milhares de pessoas adormeceram sob o olhar atento de uma tela. Nos pulsos, relógios que prometem medir cada respiração, cada movimento, cada segundo de descanso. Ao amanhecer, antes mesmo de sentir o corpo, muitos já abrem o aplicativo para descobrir se, afinal, dormiram bem. O gesto parece simples, mas revela um novo tipo de crença, uma fé na tecnologia como mediadora do corpo. De aplicativos de celular a smartwatches ultrassensíveis, essas ferramentas se tornaram aliadas de quem busca qualidade de vida. No entanto, essa busca também levanta a questão sobre até que ponto é possível confiar nas máquinas.
Para o desenvolvedor Rafael Monteiro, 29 anos, a tecnologia é uma aliada importante, mas precisa ser usada com consciência. Criador de um aplicativo de monitoramento do sono, ele idealizou o projeto durante a pandemia, ao perceber que muitas pessoas enfrentavam dificuldades para dormir e não tinham acompanhamento profissional. O objetivo, segundo ele, nunca foi substituir o olhar médico, mas ajudar o usuário a compreender melhor seus hábitos. Rafael acredita que a popularização dos relógios inteligentes trouxe um ganho relevante: a ampliação da autopercepção. Ao observar seus próprios dados, as pessoas passaram a se interessar mais pelo próprio corpo. Ainda assim, ele reconhece que há um risco em transformar números em verdades absolutas. Para ele, o corpo humano é muito mais complexo do que qualquer algoritmo, e a tecnologia deve servir apenas como um apoio para observar, não como uma forma de sentir. O desenvolvedor nota que, muitas vezes, usuários se frustram ao ver resultados considerados ruins, mesmo após uma boa noite de descanso. Em sua visão, os dados oferecidos pelos aplicativos são apenas indicativos, e não diagnósticos.
A neurocientista Helena Duarte, professora e pesquisadora da USP, observa o mesmo fenômeno sob outra perspectiva. Para ela, os dispositivos tecnológicos que prometem medir a qualidade do sono podem criar uma dependência silenciosa. Helena estuda há mais de uma década a relação entre tecnologia e sono e alerta que esses aparelhos não medem a atividade cerebral, e sim sinais indiretos, como movimentos e batimentos cardíacos. Por isso, são ferramentas úteis, mas que precisam ser interpretadas com cautela.
A pesquisadora nota que cresce o número de pessoas ansiosas por não atingirem a “nota ideal” de sono. Esse comportamento, conhecido como ortosonia, é resultado da busca constante por uma noite “perfeita” segundo as métricas digitais. Para ela, o problema está na terceirização da percepção: as pessoas esperam que o aplicativo diga como se sentem, transferindo para a tecnologia a autoridade que antes pertencia ao próprio corpo.
Apesar das diferenças de enfoque, Rafael e Helena compartilham um ponto em comum: a crença de que a tecnologia pode ser positiva, desde que usada com equilíbrio. Para o desenvolvedor, os aplicativos devem ser vistos como aliados, e não como juízes. Já para a pesquisadora, eles podem funcionar como espelhos que ajudam a enxergar hábitos, mas jamais como um veredito final. Ambos acreditam que o futuro não deve ser de dominação tecnológica, mas de convivência consciente. A tecnologia pode contribuir, desde que o usuário mantenha o senso crítico e a escuta do próprio corpo.
No fim das contas, a resposta talvez não esteja nos gráficos nem nas porcentagens. Está no simples ato de acordar e se sentir bem, mesmo quando o relógio indica o contrário. Entre a fé no algoritmo e a sabedoria do corpo, cada noite de sono continua a repetir a mesma pergunta: quem realmente sabe se descansamos, a máquina ou nós?