Por Nathalia Cristina Teixeira Bezerra
Aplicativos como Uber, Ifood, 99 táxi, Rappi e semelhantes começaram a surgir em meados de 2014 e hoje são mais usados que qualquer outro serviço do mesmo cunho que antecede a era dos smartphones. Acontece que, com a popularização destes, a demanda de trabalhadores informais aumentou e houve também um crescimento da precarização das condições de trabalho e do uso da mão de obra barata. Os prestadores de serviços dessas plataformas vêm se queixando dos baixos salários que recebem e da falta de humanização para atendê-los, problema que se agravou ainda mais na pandemia da Covid-19. Além de não ter acesso a um suporte de segurança decente, os motoristas e entregadores são trabalhadores informais, precisamente pela falta de regulamentação envolvendo esses aplicativos. Por esses e outros fatores que essa é considerada a era da terceira fase da escravidão moderna.
Tanto os servidores como os clientes que utilizam esses apps têm uma queixa em comum: a falta de um suporte decente para atendê-los. Se antes utilizávamos o SAC para tirar dúvidas e fazer reclamações, hoje somos respondidos com mensagens automáticas e programadas que, na maioria das vezes, não ajudam na resolução do problema. Essa falta de profissionais humanos para o atendimento faz com que os funcionários percam ainda mais seus direitos, que não são muitos. A ausência do registro assinado na carteira de trabalho torna a situação ainda mais delicada. Essa falta de um chefe por detrás da logística dos atendimentos consiste em fazer com que os entregadores tenham que realizar mais entregas do que os limites do corpo permitiriam. A quantidade excessiva de corridas em tempo recorde que eles precisam cumprir para garantir um salário mínimo é o que os leva ao cansaço extremo e, consequentemente, ao adoecimento.
Durante a pandemia, já era esperado que aumentasse a demanda de pedidos do Ifood e outros aplicativos de entrega de comida. Com a maioria das pessoas cumprindo o isolamento social em casa, houve um boom no consumo desse tipo de serviço e várias questões foram levantadas. A principal era a da saúde: se os colaboradores estavam colocando a própria saúde em risco, precisando aumentar o número de horas trabalhadas para atender o público crescente, por que o salário ainda era o mesmo? A queixa do grupo também era sobre as porcentagens altas que essas empresas recebem (até os dias de hoje) comparado ao que eles mesmos ganham no final do dia. Na quarentena, a mão de obra foi ainda mais precarizada justamente pelo fato de que, em meio a uma pandemia global de um vírus até então desconhecido, eles precisaram trabalhar com maiores chances de adoecer e não houve nenhuma mudança significativa na comissão. Essa série de problemas resultou na mobilização dos prestadores de serviços dos apps, que tentou ser impedida pelos donos dessas empresas, mas sem sucesso. Depois da greve de 2021, o Ifood entrou em um acordo com seus servidores para definir uma taxa mínima de entrega. Apesar de ter sido uma pequena vitória, ainda não é suficiente e muito menos proporcional ao que deveria.
Alan Moreira tem 47 anos e começou a trabalhar como entregador depois de perder o emprego na pandemia. Ele trabalhou durante 24 anos em uma multinacional, mas em 2020 foi um dos diversos colegas afetados pelo corte de funcionários da empresa. Atualmente ele está em busca de um novo trabalho com carteira assinada, entretanto, enquanto não consegue oportunidade para uma entrevista, faz entregas para duas dessas empresas de entregas de delivery. A rotina de Alan é extremamente “exaustiva e pesada”, como ele mesmo disse. Sua jornada de trabalho começa ao meio dia, com entregas no horário do almoço e termina por volta das 11 da noite, podendo se estender até meia noite. “De fim de semana então, piorou. Não tem horário para acabar. Já finalizei uma entrega às 6 da manhã”, contou.
Ao questionar Alan sobre como foi atuar na pandemia, ele disse que “foi desafiador [...]. Meu maior medo era transmitir o vírus para meus filhos. Mas não tinha o que fazer, eu precisei colocar comida na mesa”, lamentou. Pai de dois filhos, de 9 e 14 anos, respectivamente, ele seguiu à risca todas as recomendações da Organização Mundial da Saúde para se prevenir contra o coronavírus. Porém, em outubro de 2021 foi infectado e teve que ficar em isolamento por 15 dias: “Não tive nenhum direito. Fiquei sem receber durante a quarentena. Sorte que minha irmã me ajudou com as despesas, se não, não sei o que teria sido”. “Queremos somente o mínimo. Seguro de vida, condições básicas de trabalho, como por exemplo banheiros para usarmos no intervalo das corridas [...]. Nem um copo de água a gente pode ter. É para isso que fizemos e vamos continuar fazendo barulho. Por condições dignas, estamos aqui para sobreviver”, afirmou Alan, sobre as maiores reivindicações dos entregadores nos protestos.
Reinvenção da escravidão no capitalismo
O capitalismo tem a capacidade de se reinventar a cada novidade na era tecnológica. No mundo digital, a publicidade foi um dos maiores pilares que proporcionou o aumento do consumismo a partir de ferramentas básicas, como os celulares que hoje são acessíveis a toda a população. O surgimento dos aplicativos de serviços como Ifood e Uber não foi à toa: dentro desse sistema, o trabalhador informal sempre foi colocado à margem da sociedade. Um exemplo básico disso são as terceirizações. Empresas como Vivo, Claro e outras operadoras de telefone usam funcionários terceirizados tanto para o telemarketing, quanto para serviços técnicos, justamente para não gastar com o registro dessas pessoas. Atualmente, a terceirização conseguiu ser informalizada pelos apps, justamente porque essas empresas não precisam contratar outra empresa, apenas colocar pessoas que, no desespero de um país com alta taxa de desemprego como o Brasil, se inscreveram voluntariamente para trabalhar com eles.
Mas por que comparar o trabalho assalariado com a escravidão? Bem, apesar de ser remunerado, a falta dos direitos trabalhistas e os baixos valores que eles recebem por entrega, torna a condição de trabalho análoga a escravidão. O próprio Alan pontuou que “nossa situação se assemelha com a dos escravos. Acho que esse termo define muito bem o que somos, escravos modernos [...]. Só quem trabalhou anos com contrato CLT e diversos benefícios consegue enxergar a diferença de um emprego digno com o que passamos com esses aplicativos”. Não só entregadores de Ifood como Alan, como também motoristas de aplicativos estão sujeitos a trabalhar por diversas horas para ganhar o mínimo e não ter direito ao autocuidado. O fato de não existir uma regulamentação eficiente que atenda a esse grupo e a demanda ser disponibilizada por ferramentas robotizadas faz com que os servidores fiquem sem tempo para se profissionalizar em áreas que garantem condições melhores, para ganhar uma baixa comissão que será usada apenas para a sobrevivência, como custos com aluguel e despesas da casa. Em suma, eles são obrigados a estarem à disposição dos aplicativos para, no fim, conseguir a moeda de troca que garante um teto, tal qual a escravidão.
O método que garante a exploração
Dentro das estatísticas, o trabalho informal tem raça e classe: a grande maioria dos motoristas e entregadores de aplicativos são negros e periféricos. A exploração da mão de obra barata é o que faz a manutenção do capitalismo e o fato só condiz com a realidade do Brasil, porém agora dentro dos trâmites da era digital. Em média, um servidor do Ifood ganha 4 reais por corrida feita. Considerando o preço atual da gasolina e a velocidade que esse servidor precisa atingir para conseguir realizar a entrega a tempo, o valor é abusivo e não condiz com o proporcional para o tipo de trabalho.
Acontece que o padrão acontece da seguinte maneira: existem dois tipos de trabalhador no Ifood e semelhantes. O Nuvem e o OL (operador de logística). O primeiro é o mais comum e consiste no modelo adotado por Alan Moreira. Basicamente, ele recebe por entrega realizada, se não entregar, não recebe nada. Aqui, em tese, ele trabalha nos dias, horários e tempo que quiser, mas na prática não é assim que funciona, pois ele fica escravo do programa. Já o OL tem tudo acertado com seu operador logístico. Geralmente esse operador é um restaurante ou um mercado e ele trabalha somente para esse. Ainda que tenha um combinado mais “seguro”, os entregadores optam pela Nuvem porque podem trabalhar a hora que quiserem e ganhar um pouco mais de dinheiro. No final, ambas as formas abusam da força de trabalho deles, o que só confirma as falas de Alan sobre suas condições de vida.
É errado dizer que a escravidão moderna é causada pela tecnologia. A tecnologia que amplifica a escravidão moderna. O que sustenta esses meios é justamente o controle das classes dominantes no poder econômico, que precisa explorar as camadas mais pobres da sociedade para se manter no poder. Quanto mais funcionários perderem os empregos com carteira assinada para trabalhar ganhando 4 reais para uma plataforma milionária, mais os empresários e associados dessa plataforma estarão lucrando com ela. A invenção desse tipo de troca é vendida aos clientes como uma “solução justa”, já que eles pagam pequenos valores para receberem os pratos em casa. Apesar de não ser culpa de nós, fregueses, precisamos entender essas questões e refletir sobre a maneira como consumimos esse tipo de serviço. A principal forma de reverter esse cenário de forma eficiente, considerando as condições atuais, é apoiar a luta dos entregadores e motoristas e entender as reivindicações, para contribuir diretamente com eles.