Por Giulia Pezarim e Julia Cachapuz
“Custei a pedir, mas quando precisei criar meus filhos, não pensei duas vezes." A frase é parte de um áudio enviado via WhatsApp pela trabalhadora doméstica Vera Lúcia Oliveira, e teve como pano de fundo a gritaria empolgada de três crianças de 3 a 10 anos, que corriam na euforia da infância pela casa de Itapecerica da Serra, próxima ao Terminal Capelinha.
Vera Lúcia é uma mulher preta que saiu da secura encantada do sertão de Passira, em Pernambuco, para tentar a vida em São Paulo, assim como muitos conterrâneos seus e outros inúmeros migrantes oriundos das regiões nordestinas do Brasil. Aos 23 anos de idade, pesando nada mais, nada menos, que 50 quilogramas, ela se propôs a mudar os trilhos da sua história e, pegando estrada para a capital financeira do País, trouxe seus dois filhos pequenos para o que viria a se tornar uma longa jornada pela "Selva de Pedra" tupiniquim.
De início as coisas não foram fáceis. Aliás, de acordo com suas próprias palavras ditas em voz eloquente e de sotaque carregado, “passou longe do fácil”. Sua sorte grande foi contar com a irmã mais velha, Maria – como a mãe de Cristo –, que já vivia em São Paulo antes mesmo de a cidade ter tido a oportunidade de pousar as infinitas luzes artificiais sobre o corpo de Vera. Aliança entre a primogênita e a segunda de 12 filhos, o laço fortalecido por histórias de solo rachado e muitos pequis comidos longe dos olhos rigorosos da matriarca da família, sua irmã mais velha não apenas arcou com os custos da protagonista deste perfil, assim como lhe arrumou seu primeiro emprego no bairro de Pinheiros, na Zona Oeste. “Por isso que digo, fia.... Família é uma coisa de doido”, ela diz enquanto a água corrente da pia grita do outro lado da tela do celular.
Em seu primeiro emprego, no qual foi empregada doméstica na casa de uma família de quatro pessoas, Vera Lúcia conseguia tirar um total de R$ 130 por mês, para lavar banheiros, arrumar quartos, cozinhar, lavar e passar, por exemplo. “Mas depois isso mudou.... A patroa me aumentou o salário pra 150 e quando eu saí, se não me engano, ganhava 250”, disse relembrando o período. “Mas, ó: depois que eu saí da casa dela, consegui um emprego melhor em Alphaville e aí, finalmente, eu consegui alugar um quarto pra morar com Naná (sua filha mais velha) e Rogério (o caçula) e não ficar mais na casa de Maria."
Durante o ano de 1995 – quando ela botou os pés para ficar de vez em São Paulo – Vera teve de lidar com alimentação precária, pouco espaço para o desenvolvimento de seus dois filhos e uma rotina “do cão” no trabalho de empregada doméstica. Naquele mesmo ano, o maior nome do neoliberalismo tropical, Fernando Henrique Cardoso, desfrutava de seu primeiro mandato na presidência do Brasil, dando início a quatro anos marcados por um intenso processo de privatizações.
Apesar de ter ganhado notoriedade com o desempenho do famigerado Plano Real e outros sucessos do projeto neoliberal, o governo de Fernando Henrique Cardoso não esteve isento de várias mazelas que acompanhavam os ideais desenvolvidos na década de 1970 por teóricos cansados de contemplar o Estado de bem-estar social e as dívidas geradas pelo plano keynesiano de economia. Dessa forma, o Brasil enfrentou um período de aumento nas taxas de desigualdade social e, em 2002, o mandato FHC terminou tendo prejudicado em sua maioria trabalhadores, os setores da agricultura, comércio, serviços e indústria.
Com a corrida eleitoral em 2002 e a alta rejeição de Fernando Henrique Cardoso em seu último mandato, o Brasil pôde conhecer o primeiro presidente provindo do proletariado brasileiro, em 2003, com a vitória de Luís Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores.
Vera conheceu Lula, apesar de Lula não ter conhecido Vera. E ela sabia que o neo-desenvolvimentismo apresentado pela primeira eleição do trabalhador pernambucano (como a própria) seria uma gestão que focava no crescimento da classe trabalhadora. Assim o foi.
De acordo com um artigo publicado pelas pesquisadoras Walkiria Martinez Heinrich Ferrer e Maria Rossignoli, da região sul do brasil, o programa neo-desenvolvimentista implantado pelas primeiras gestões do Partido dos Trabalhadores no Brasil integraria "determinadas medidas políticas, econômicas e sociais que visam, dentre outros fatores, a destinação de recursos públicos para programas de transferência de renda". Entre os programas, elas citam o Fome Zero e o Bolsa Família.
E assim, Vera não conheceu apenas Lula, como também o Bolsa Família, que seguiu muito bem a lógica da teoria econômica implantada pelo Partido dos Trabalhadores, e também se tornou notório entre os proletários que usufruíram do programa para mudar (ainda que minimamente) suas vidas, e aqueles que se incomodaram profundamente com o foco do palanque político ter se voltado de forma bastante simplória para as classes mais baixas.
“Ah, fia... Cê sabe, a gente precisa fazer de tudo pra viver. Pensa em uma bicha que já viveu de tudo nessa vida. Passei fome, pedi na rua, trabalhei na roça, sofri na pele o que macho acha que pode fazer com a gente, e vim pra cá criar Naná e Rogério longe do pai deles, que era viciado numa cachaça. Quando a gente vem do suor da terra, a gente se agarra a qualquer oportunidade pra melhorar um cadinho assim.” O áudio que responde ao porquê de ter buscado o auxílio do Bolsa Família termina assim. Um "cadinho" assim, porque até mesmo essa pequena parte que cabe e sobra às classes mais baixas, segundo a Vera Lúcia, faz toda a diferença.
Na época, ela conseguiu arrecadar do programa social o valor de R$ 90,00 mensais.
“Sabe o que é ingrato mesmo? É ouvir dessa gente (candidatos do PSL em 2018) que a gente que usa Bolsa Família é encostado. Me responde aqui, fia: quem pode se encostar, não trabalhar, não fazer é nada, vivendo de 90 real por mês? A gente tem é que trabalhar, tirar leite de pedra, pra comer durante o mês. Queria saber onde essa gente tá andando, porque não é na minha banda não....”, finaliza.