Cármen Lúcia e Cristiano Zanin, ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), votaram, na tarde da última quinta-feira (11), a favor da condenação do ex-presidente Jair Bolsonaro e de outros sete réus acusados de tentativa de golpe de Estado e abolição violenta do Estado Democrático de Direito. Os votos desta sessão somaram-se às deliberações dos ministros Alexandre de Moraes e Flávio Dino, que votaram no início da semana, e formaram maioria para a condenação do ex-chefe do Executivo aos cinco crimes que lhes foram atribuídos pela Procuradoria-Geral da República (PGR).
Na sessão que se estendeu pela quarta-feira (10), no entanto, o ministro Luiz Fux votou pela absolvição de seis dos oito acusados na Ação Penal 2.668, incluindo o ex-presidente da República. Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro e delator do processo, e Walter Braga Netto, ex-ministro da Casa Civil, foram, a partir do voto de Fux, condenados pela tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito.
ATENÇÃO, EMINENTE MINISTRO LUIZ FUX!
Em seu voto, Luiz Fux apontou a “incompetência absoluta” da Suprema Corte para julgar a trama golpista que, segundo o ministro, deveria ter sido analisada em plenário, não apenas pela Primeira Turma do STF. Cármen Lúcia, por sua vez, reiterou o compromisso da Cúpula com o julgamento em tramitação: “Sempre entendi que a competência era do STF. Não há nada de novo para mim, votar do mesmo jeito que sempre votei”, afirmou a ministra.
Cármen Lúcia, bem como Alexandre de Moraes, Flávio Dino e, posteriormente, Cristiano Zanin, divergiram nas interpretações sobre os “atos preparatórios” do caso, aqueles realizados antes da consumação do crime e que, segundo o Código Penal, não são, por si só, puníveis. A tese defendida pelos ministros favoráveis à condenação dos réus é que os atos preparatórios do golpe de Estado já configurariam crimes e, portanto, deveriam ser punidos.

"Ninguém pode ser punido pela cogitação”, afirmou Luiz Fux diante da Primeira Turma em seu voto, no entanto. Na contramão, não explicitamente como uma resposta direta ao ministro, Cármen Lúcia defendeu: “Atos ditos como preparatórios não podem ser considerados como dados isolados quando a conduta adotada já é o início do que se pretende [golpe de Estado e abolição do Estado Democrático de Direito]”.
O presidente da Primeira Turma reforçou a validação dos atos preparatórios quando abordou sobre a preliminar em sua deliberação. “Embora a legislação brasileira exija a utilização de critérios objetivos para determinação do início da execução do crime, é perfeitamente possível a incorporação de considerações relativas ao plano do autor”.
A ministra ainda destacou, diferente de Fux, a atuação de uma organização criminosa, orquestrada por Jair Messias Bolsonaro. Cármen Lúcia, conforme também indicava os autos do processo, apontou que o ex-presidente esteve responsável pela “propagação de desinformação sobre o sistema eleitoral e ataques aos poderes constituintes e seus representantes, a instrumentalização de instituições do Estado, a cooptação de comandos militares para instituir as providências antidemocráticas, planejamento de atos de neutralização de agentes públicos [Operação Punhal Verde e Amarelo] e instigação de manifestações”.
O QUE MAIS DEFENDEU CÁRMEN LÚCIA?
Por vezes, Cármen Lúcia destacou o caráter “progressivo e sistemático” do plano golpista que, segundo a leitura da Cúpula, teve início há quatro anos, durante o governo de Jair Bolsonaro. “Desde 2021, para além da provação mundial da pandemia do Covid-19, novos pesares sócio-políticos brotaram nestas terras: práticas que conduziram à tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito e golpe de Estado. Arou-se um terreno social e político para semear o grão maligno da anti-democracia”, afirmou a ministra.
"O 8 de janeiro de 2023 não foi um acontecimento banal depois de um almoço de domingo, quando as pessoas saíram a passear. O inédito e infame conjunto de acontecimentos havidos ao longo de um ano e meio para insuflar, maliciar e instigar práticas variadas de crimes condizentes ao vandalismo haveria de ter uma resposta no Direito Penal”, prosseguiu.
Alexandre de Moraes solicitou aparte no voto de Cármen Lúcia para demonstrar o crime de grave ameaça ao Estado Democrático de Direito. O ministro-relator apresentou um vídeo em que o ex-chefe do Executivo, durante um ato em 2021, ataca o Poder Judiciário, pede a saída de Moraes do STF e ainda o chama de “canalha”. O juiz afirma que, desde aquele ano até 8 de janeiro de 2023, “a organização criminosa seguiu o mesmo discurso”, o que “caracteriza as novas ditaduras no mundo”, segundo sua interpretação.

"Foi uma tentativa de golpe de Estado, não foi combustão espontânea. Não foram baderneiros descoordenados, todos fizeram fila e destruíram a sede dos Três Poderes. Gozaram da utilização do GSI (Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República), da ABIN (Agência Brasileira de Inteligência), Ministério da Justiça, PF (Polícia Federal) e da PRF (Polícia Rodoviária Federal)”, relembrou Moraes.
Cármen Lúcia, também presidente do Tribunal Superior Eleitoral, retomou a acusação da PGR, que apontou as ofensivas à legitimidade das urnas como recurso estratégico do golpe: “Há prova nos autos sobre a utilização de uma milícia digital para propagar ataques ao Judiciário, à Justiça Eleitoral e às urnas eletrônicas”, afirmou a chefe do TSE, sem deixar de destacar a eficiência, segurança e transparência do sistema eleitoral brasileiro.
Por fim, a ministra reafirmou a delação de Mauro Cid e destacou seu papel como “ator” na trama golpista, não “espectador” como alegaram suas defesas: “Está comprovada a participação do réu no plano de golpe. Cid atuou na comunicação, no repasse de documentos, na produção de provas falsas para a investigações das eleições de 2022, na angariação de recursos e na garantia de sintonia entre os integrantes e possíveis participantes da trama golpista”, concluiu.
Assim como Cármen Lúcia, Cristiano Zanin, abriu a leitura do seu voto com a reafirmação da competência do Supremo Tribunal Federal para julgar a ação penal. Zanin destacou que a responsabilidade da Corte foi decidida no início do processo dos envolvidos no dia 8 de janeiro de 2023. De acordo com o magistrado, já foram realizadas 1.500 ações julgadas, 640 condenações transitadas em julgados e 552 acordos de não repercussão penal.
IRREGULARIDADE NO ACESSO ÀS PROVAS, NEGADA
Zanin também discordou da existência de cerceamento de defesa — impedimento do acesso às provas pelas defesas — levantado pelo ministro Luiz Fux na sessão de quarta-feira. O presidente da Turma ainda reforçou que um material amplo, compilado pela PGR, não pode se encaixar nessa tipificação, uma vez que “a defesa recebeu a oportunidade de fazer análise do que achavam cabível e trazer algum tipo de demonstração”, ressaltou.
O ministro Alexandre, novamente em aparte, defendeu que os materiais que a defesa julgou não haver tempo hábil de análise não foram pertinentes no processo de denúncia realizado pela Procuradoria-Geral da República — ou seja, os denunciados, segundo Moraes, tiveram direito à ampla defesa. “Se houvesse alguma dificuldade ou manipulação de acesso aos dados, caberia aos advogados procurarem auxílio técnico”, reforçou Zanin. Vale destacar que os atos probatórios não foram trazidos durante as falas das defesas.
PLANO CONSISTENTE PARA PERSEGUIR UM PROJETO DE PODER
Sobre o crime de organização criminosa armada, Zanin reconheceu que, com base na denúncia da PGR, houve uma estruturação hierárquica e estável pelo período de, pelo menos, um ano, independente de “qual fosse o método criminoso a ser utilizado”.
Além de haver uma divisão de tarefas orientada a perseguir, nas palavras do magistrado, “um projeto de poder”. Ele ainda destacou o papel de cada integrante:
-
Os oito réus participaram de uma organização com objetivos propositivos — sendo Jair Bolsonaro o líder do grupo criminoso;
-
Paulo Sérgio Nogueira, como general do Exército e ex-ministro da Defesa e Almir Garnier, como ex-comandante da Marinha, disponibilizaram contingentes materiais e de força ao plano;
-
Augusto Heleno e Alexandre Ramagem forneceram auxílio psíquico elaborando planos e discursos de apoio à trama golpista, além do ex-diretor da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) fazer uso do cargo para monitorar servidores e agentes públicos de interesse da organização;
-
Anderson Torres colaborou pela difusão de notícias falsas sobre o sistema eletrônico de votação e utilizou do seu cargo como secretário de Segurança Pública da PF para impedir o trânsito de eleitores no segundo turno de 2022. Zanin ainda pontuou que o secretário viajou às vésperas do dia 8 de janeiro, ignorando o risco elevado de convulsão social;
-
Mauro Cid foi o porta-voz de Bolsonaro, responsável por mediar informações e orientar os participantes;
-
Walter Braga Netto contribuiu com a execução do plano “Punhal Verde-Amarelo”, cujo objetivo era assassinar o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o vice-presidente Geraldo Alckmin (PSB) e o ministro Alexandre de Moraes.
O presidente da Turma ainda reforçou que a organização criminosa “requiria a permanência de Jair Bolsonaro no poder e não de outra figura” — sendo o ex-presidente da República, além de líder, o maior beneficiário do plano.
“Essa organização criminosa queria calar o Judiciário, perpetuar Bolsonaro no poder e abolir o sistema de freios e contrapesos: o Estado Democrático de Direito, mesmo que fosse preciso matar um ministro do Supremo Tribunal Federal, envenenar o presidente da República ou praticar peculato — crime em que um funcionário público atua conta a própria Administração Pública”, contribuiu Moraes.
ATAQUES CONTRA O JUDICIÁRIO: “NOVO POPULISMO DIGITAL EXTREMISTA”
Os ministros do Supremo Corte também reforçaram que houve uma tentativa de restrição ao exercício do Judiciário. Dino destacou, durante sua interrupção à fala de Zanin, que a presente ação é importante frente à tentativa de fragilização da democracia ao redor do mundo. No dia 10, o magistrado representou um pedido protocolado de denúncias incitadas contra os ministros e suas famílias nas redes sociais, durante o julgamento.
Moraes reforçou a preocupação de Dino “Não atacam a democracia, atacam os instrumentos que levam à democracia”. O magistrado denomina o conjunto dessas práticas como um “novo populismo digital extremista”.