STF e Congresso disputam distinção jurídica entre usuário e traficante

A guerra às drogas só é travada nas periferias
por
Bruna Quirino
Luana Galeno
|
18/09/2023 - 12h

Por Luana Galeno  (texto) e  Bruna Quirino (audiovisual)

 

A risada é incontrolável, a frase seria de desabafo da minha amiga não parece nem séria nem verdadeira, é apenas hilária. Não tem razão pra eles estarem falando tanta besteira assim de uma vez. É quase confuso como minha bochecha está doendo de tanto dar risada já que eu puxei uma, duas… no máximo umas quatro vezes. E eu penso Julia, para de dar risada assim.

Quando cheguei na casa do Matheus nem estava pensando na possibilidade de fumar maconha. Acho que nunca havia nem cogitado, mas ele me ofereceu e resolvi aceitar. A risada deve mesmo ser um efeito das tragadas que eu compartilhei com minha meia dúzia de amigos, porque é a primeira vez desde que eu me lembre que minha mente está pensando em um ritmo decente. Também dou risada ao observar que consigo raciocinar sobre o que vou resolver quando a pessoa já terminou de falar. Viver sem ansiedade deve ser isso, estar no controle da sua própria cabeça. E imaginei que poderia ser esse motivo de todo mundo na faculdade usar isso o tempo todo.


Aliás, a aula é às sete, amanhã.

pessoa bolando
Julia bolando um baseado. Foto: Bruna Quirino.


Foi antes mesmo, às 6h00min, quando pegou seu celular para desligar o alarme, que descobriu que não é por acaso que todo mundo que usa estuda dentro de uma das melhores faculdades de São Paulo, que é todo mundo branco e playboy. O Marcus, um amigo, tinha sido detido com 10g no bolso e qualificado como tráfico de drogas. No Brasil, não tem uma lei concreta que defina o que é porte de drogas para consumo pessoal ou para tráfico. Os critérios que diferenciam as duas situações variam entre tipo de droga, a quantidade atrelada à outros fatores, local da apreensão, entre outras questões. Isso eu descobri rapidamente em uma pesquisa no Google.

Pelo o que a Laura falou ele estava chegando na casa dele, no Capão Redondo, quando foi enquadrado depois de descer do ônibus e seguir andando para sua casa e pensou sobre como é possível que a decisão sobre isso seja feita por um policial. A revolta talvez seja menor com quem se habituou com o racismo. Com quem se satisfaz com a imprudência das leis brandas ou duras demais, que prendem sempre os mesmos que não são meus colegas de classe. Deixar a decisão da vida de alguém na opinião ou nas circunstâncias não é legítimo como a lei deve ser. E se preocupa sobre o que irá acontecer com o Marcus.

Rafael Galati que trabalha na Defensoria Pública quando soube da situação quis ajudar. Ele chegou até ligar para Julia para contar quando ele foi na delegacia conversar com Marcus. O primeiro passo foi analisar a situação do flagrante. Depois de ouvir a versão do Marcus, ele conversou com o delegado para tentar entender mais sobre a prisão. A seriedade de um advogado fez com que eu pensasse se para conseguir agir dessa forma ou com aquela calma eu teria que comprar e bolar pra mim.

Enquanto lia o jornal de domingo, vi uma matéria que mostrava uma pesquisa realizada pelo IPEA (Instituto de Pesquisa e Economia Aplicada), indicando que a maioria dos processos por tráfico de drogas acontece após apreensões de quantidades pequenas das substâncias. Em 58,7% dos casos por tráfico de maconha, por exemplo, foram apreendidas menos de 150 gramas, o que é preocupante. 

Algum tempo depois marcaram a audiência de custódia, no final, ele disse que entrou com Habeas Corpus pra que o Marcus pudesse responder em liberdade e relatou, com pesar em sua voz, que a justiça brasileira não tem prazo, só os advogados. Não tem o que fazer, agora é só esperar as audiências e o julgamento. Podem ser semanas, podem ser meses, com sorte não serão anos. Pro Marcus, esse tempo vai passar bem mais devagar do que qualquer tempo que tome. Viver em um paradoxo, sem liberdade, por uma decisão pessoal, é um labirinto infinito. E é assim que o sistema funciona. O Marcus contou que a guerra às drogas só é travada da ponte pra cá. 

Finalmente, a descriminalização da maconha é uma pauta no Supremo Tribunal Federal. O artigo 28 da Lei de Drogas, que proíbe o porte de drogas para uso pessoal, está sendo discutido e revisto. O porte pessoal e a quantidade apreendida são questões que estão sendo levadas em consideração para decidir os parâmetros para a descriminalização. Porém, o resultado esperado é de que a legalização da maconha ou de qualquer outra droga não vai acontecer. Ou seja, não vai gerar uma legislação que permita o uso ou o comércio dos entorpecentes e o porte, ainda que para "uso pessoal", continuará submetido a punições como advertência e serviços comunitários.

Atualmente, o julgamento foi paralisado após um pedido de vista feito pelo ministro André Mendonça, ou seja, uma extensão de prazo para deliberar e votar. Quanto aos votos, ao todo, seis ministros já votaram. Cinco deles — Gilmar Mendes, Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Alexandre de Moraes e Rosa Weber — votaram a favor da descriminalização do porte de maconha para consumo pessoal. Apenas Cristiano Zanin votou contra. O placar para a descriminalização está em cinco a um.

Na prática, o STF já tem maioria para definir que pessoas flagradas com pequenas porções de maconha não devem ser tratadas como traficantes. Falta, ainda, decidir qual será essa quantidade-limite. Mesmo com a maioria configurada, as mudanças só serão aplicadas quando o julgamento for concluído e a decisão for publicada no Diário Oficial.