Por Enrico Peres
Todas as manhãs, milhares de paulistanos atravessam a cidade guiados por um mesmo ritual: acordar cedo, caminhar até o ponto, esperar um ônibus que talvez não chegue na hora prometida e torcer para que o Bilhete Único não trave no validador. É um percurso repetido à exaustão, um caminho longo que não aparece em mapa algum, o caminho emocional de quem depende do transporte público para manter a própria vida funcionando. Na prática, a mobilidade de São Paulo se tornou uma prova diária de resistência, onde a tecnologia, tão celebrada nos discursos oficiais, muitas vezes funciona como mais um obstáculo.
Enquanto a cidade repete mantras sobre inovação, sustentabilidade e modernização, o cotidiano segue preso a falhas antigas. São Paulo gosta de se apresentar como referência global, exibir sua frota de ônibus elétricos, seus aplicativos integrados e seus planos de transformação digital. Mas quem depende do transporte sabe que há um abismo entre o anúncio e a realidade. Em março de 2025, uma falha generalizada no Bilhete Único deixou multidões em filas intermináveis para regularizar cartões bloqueados. O mesmo sistema que, na teoria, deveria descomplicar o acesso ao transporte. A cidade parece operar em duas velocidades: a da vitrine tecnológica e a da vida comum, onde o simples ato de embarcar em um ônibus pode virar mais um golpe para quem já vive no limite.
Esse contraste cresce em um momento de instabilidade institucional. A proposta do prefeito Ricardo Nunes de extinguir a SPTrans, órgão responsável por planejar e monitorar o sistema há mais de três décadas, e transferir suas funções para a SP Regula, agência sem tradição no setor, trouxe insegurança para quem acompanha a mobilidade pública da cidade. A crise não é só administrativa: é simbólica. Coloca em risco o conhecimento acumulado por profissionais que construíram o transporte paulistano e abre espaço para decisões desconectadas da complexidade operacional da frota. Para quem depende do ônibus, essa incerteza não aparece em discursos, aparece no atraso, na catraca travada, no trajeto que demora o dobro do tempo.
Tecnologias que deveriam aproximar o usuário do sistema acabam criando novas barreiras. O aplicativo da SPTrans promete orientar trajetos e horários em tempo real, mas falha em localizar ônibus, atrasa informações e tem interface pouco acessível. Para quem não possui smartphone, crédito de internet ou familiaridade digital, ele simplesmente não existe. O Bilhete Único, outro símbolo da modernização, se tornou instável: validações que falham, máquinas de recarga sem funcionamento, cartões bloqueados sem explicação. Quando isso acontece no meio da viagem, o usuário não vê um “erro técnico” vê o custo emocional e financeiro de depender de um sistema que não o reconhece plenamente.
Outras iniciativas reforçam essa sensação de desconexão com a realidade das ruas. A bilhetagem via QR Code exige celular, câmera e internet. Ferramentas inacessíveis para uma parte significativa dos passageiros. A biometria facial, testada como promessa de segurança, levanta dúvidas sobre privacidade e eficácia em uma rede que ainda não consegue garantir previsibilidade básica. E a suspensão da plataforma SMGO, que monitoraria a frota em tempo real, deixou um vácuo operacional: sem dados confiáveis, o planejamento se perde, e o usuário paga a conta na forma de atrasos e ônibus lotados.
Até esforços positivos, como a introdução de ônibus elétricos, acabam ofuscados pela falta de infraestrutura. Eles representam menos de 7% da frota total e enfrentam dificuldades de manutenção e recarga, tornando o discurso ambiental um símbolo mais político do que funcional. Há modernização sim, mas ela vem em parcelas pequenas, incapaz de equilibrar a balança entre promessa e experiência real.
No fim, a mobilidade urbana em São Paulo revela um paradoxo: a tecnologia está presente, mas não está a serviço de quem mais precisa. O sistema deveria reduzir distâncias, mas muitas vezes cria outras. Deveria facilitar a vida, mas frequentemente a atravanca. Deveria acolher todos os perfis de usuários, mas exclui quem não se encaixa no padrão digitalizado que a cidade insiste em impor.
O futuro da mobilidade paulistana não depende apenas de novos aplicativos, ônibus elétricos ou mecanismos de biometria. Depende de reconhecer que dignidade e acesso são tão importantes quanto inovação. E que, antes de anunciar soluções futuristas, São Paulo precisa garantir o básico: fazer o ônibus chegar, fazer o cartão funcionar, fazer o passageiro sentir que o sistema realmente foi feito para ele.