Em sua 42º edição, a Semana de Jornalismo promovida pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo apresenta como tema o 4º Poder na Era 4.0 e trouxe, na noite desta quarta-feira (23), o debate “Passando a boiada: Meio ambiente na crise política e sanitária”, acerca de como continuar a luta por sua preservação e dos problemas causados pela pandemia.
Mediada pelo professor Cristiano Burmester, da PUC-SP, foram convidados para a mesa Ana Carolina Amaral, jornalista ambiental (Folha de S. Paulo); Emily Costa (Amazônia Real); Messias Basques, doutor em Antropologia pela UFRJ e pesquisador de populações indígenas no Mato Grosso do Sul, e Renata Tupinambá, co-fundadora da Rádio Yandê, primeira web rádio indígena do Brasil.
Renata Tupinambá começou as discussões introduzindo como a ditadura intensificou a perda dos territórios indígenas e a violações de direitos, o que é descrito no relatório Figueiredo. Nas décadas de 1930 e 1940, familias indígenas foram expulsas pela soltura de boiadas de gado nos seus territórios. O descaso, principalmente em locais mais afastados, deixou feridas abertas até hoje. "Uma situação de garimpo não é apenas a terra explorada, mas também aliciamento de jovens (prostituição e droga), o que intensifica seu rastro de destruição", explicou. Sobre o cenário político atual, ressaltou que estamos vivendo um período em que pessoas irresponsáveis estão no governo e ao analisar o todo, é difícil encarar os discursos como naturais. Renata, que também é jornalista, explicou que a mídia é central para denunciar e acompanhar o que está ocorrendo nesse sistema. Sobre a etnomídia, disse: "Quando produzimos notícias, colocamos também nossa visão cultural, o que é diferente da mídia. Acreditamos na comunicação uma forma mais eficaz de educação. Educação é comunicação e comunicação é educação".
Emily Costa mudou-se para Roraima aos oito anos e notou que grande parte da população é composta por migrantes, e analisa a região como um “microcosmo” entre locais, migrantes e imigrantes dos países próximos. A jornalista, que acompanhou a chegada dos venezuelanos em 2017 e 2018, hoje acompanha a pauta dos povos indígenas do lavrado para os quais a pandemia se mostrou devastadora, “Na Reserva Raposa Serra do Sol, por exemplo, é possível ver o impacto direto na vida das pessoas. Quando os grandes referências falecem, quem irá repassar o conhecimento?". Também demonstrou sua preocupação com as queimadas que estão ocorrendo nos últimos meses, principalmente porque 50% de Roraima é terra indígena e o governador é alinhado com os ruralistas que ameaçam quem vive nesses territórios: "Enquanto a queimada é uma pauta nacional, aqui ela ainda não chegou. Mas quando chegar, não será mais notícia".
Nos últimos 10 anos, Messias Basques trabalha com povos indígenas no Mato Grosso do Sul. Para a mesa, trouxe alguns questionamentos sobre a visão dos não-indígenas, como “o que pode ser meio ambiente?”. Sobre a luta indígena, indagou: "Mesmo que se diga que os direitos foram dados e não conquistados, tem um direito do século 17, o indigenato, ou seja, direito à terra. Portanto os direitos conquistados, estão sendo violados [...] e isso não vem do Estado, mas mediante muita luta'". Citou ainda uma passagem do livro “A Queda do Céu”: "Quando falam da floresta, os brancos usam outra palavra: meio ambiente. É o que resta de tudo que sobrou do que eles destruíram até agora. [...] Nós xamãs, defendemos a floresta por inteiro".
Ana Carolina Amaral compartilhou suas inquietações com a cobertura de pautas ambientais: "Eu me perguntei: será que fazemos jornalismo com a mentalidade que gerou os problemas ambientais?". No debate, também foi discutido o discurso do presidente Jair Bolsonaro na Assembleia Geral da ONU na terça-feira (22). A jornalista argumentou que estamos vivendo uma guerra de narrativas, que pode se acirrar cada vez mais, e que a legitimidade da opressão está em jogo. “O que estamos vendo é uma repetição: ele (Jair Bolsonaro) não quer convencer ninguém, ele quer confundir. E a boiada é uma das estratégias para isso".
Ainda, na opinião de Amaral, não se pode apenas falar “eu já sabia”, mas sim buscar o que é relevante para a sociedade. Enquanto à cobertura jornalística de questões ambientais, argumentou: "Acho que a grande questão é ter se separado o que é humano e o que é meio ambiente, e o jornalista tenta se enxergar fora da sociedade. [...] A natureza é comunicativa, e nela, não acontece a parte é intrínseca a estratégia de sobrevivência. Assim como o jornalismo pertence ao ecossistema da sociedade, e aí temos uma função social". Emily Costa explicou que se deveria dar mais importância à questão humana e que “o filtro humano no jornalismo deve vir primeiro”.
Acerca da relação entre política e questões ecológicas e populações relegadas pelo Estado, explicou: "Nesses locais mais afastados nos sentimos desprotegidos. Um sentimento de ausência e de viver à margem. [...] (Na pandemia do coronavírus) as comunidades tiveram que se mobilizar, porque o Estado não fez seu papel". Salientou também que a única ligação de Roraima com o Brasil é uma rodovia que dá para a Floresta Amazônica.
Ana Carolina Amaral argumentou sobre as diferenças entre o governo atual e os anteriores em questões ambientais: “Antes o projeto era modernista, e havia a preocupação de se mostrar sustentável, por exemplo com metas de emissão de carbono, agora o governo é declaradamente anti ambiental. Aí não há o que se cobrar, e isso muda tudo. Ambos ignoram os limites do planeta, mas esse nos leva para um retrocesso muito maior”.
Respondendo sobre um possível novo modelo de sociedade através do debate ecológico, Renata argumentou: “A partir do momento que enxergamos que a natureza é tudo que somos, a gente consegue ver o todo e trazer pra nossa narrativa de comunicação. Segundo Messias Basques, o caminho é "Educação de forma ampla. Se compartilharmos e sugerirmos informações com pessoas mais próximas, já é um caminho". Para Ana Carolina, a pandemia provou que o mundo pode parar, e talvez tenha aberto uma brecha para se pensar que ele possa girar de outra forma. Já Emily apontou o papel do jornalismo na questão: “O jornalismo tem que priorizar a busca pela verdade e a importância de conectar conhecimentos.”
Perguntados sobre os desafios dos próximos prefeitos municipais, Emily Costa destacou que Boa Vista enfrenta, além de novos problemas, antigas questões, com o descaso com povos indígenas. "Como não demos prioridade para a pauta ambiental nas eleições federais, nas municipais isso será necessário", destacou Ana Carolina Amaral. Messias Basques sugeriu aos presentes uma pesquisa de proposta ls de candidatos em cidades do estado de São Paulo que abrigam terras indígenas.
Sobre as saídas para a posição passiva da mídia para as ações do governo, o antropólogo destacou que não basta dizer que é mentira, mas também mostrar o que é a realidade. Para Renata, não é apenas um problema com a imprensa: “Já encontrei muita censura, sermos impedidos de noticiar. Não é apenas os jornalistas, mas um sistema que impede que as informações cheguem. [...] Seria muito inocente pensarmos que pessoas de determinadas esferas possibilitariam que essas notícias chegassem".
Acerca de possíveis políticas para reparação ambiental, Messias explicitou que ela encontra a questão indígena: “Passa pela ideia de território. A ideia de terra indígena que os não-indígenas e a imprensa têm não é a mesma visão que os indígenas têm de território”. Destacou ainda que, enquanto uns têm múltiplas cidadanias, tem-se a noção de que não se pode ser indígena e brasileiro. “Ainda não entendemos que a floresta Amazônica não existiria sem os indígenas, não está em nosso imaginário", finalizou.
Perguntada sobre o silenciamento das vozes indígenas, Renata Tupinambá destacou: "Temos enxergado como algo estrutural, que não vem de agora. Governos sempre serão Governo, o mesmo com o Estado. Temos visto a questão de que os povos são autossustentáveis e autônomos e isso sempre será ameaça para quem quer nos tornar dependentes. [...] Quando se muda a cultura indígena, como pelo proselitismo religioso, há o projeto de limpeza e mudança de práticas e da imposição de questionamentos nas comunidades". Apesar de tudo, permanece otimista: "Apesar do céu coberto pela fumaça, as vozes podem clarear as coisas"