Segue o jogo... e a luta

A trajetória das mulheres dentro do Jornalismo Esportivo
por
Khauan Wood
Nathalia de Moura
|
25/12/2023 - 12h

No Brasil, a mulher sempre foi colocada em posições restritivas em relação ao homem. O preconceito e o machismo ainda estão presentes em nossa sociedade. Isso se reflete em diversas áreas, inclusive no Jornalismo. A pesquisa “Gênero no Jornalismo Brasileiro”, realizada em 2017 pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), revelou que 92,3% das mulheres participantes afirmaram já ter ouvido “piadas” machistas no ambiente de trabalho e quase 66% disseram ter tido sua competência questionada devido ao seu gênero. Além disso, cerca de 70,4% das jornalistas admitiram já terem recebido cantadas que as deixaram desconfortáveis no exercício da profissão

Fazendo um recorte e analisando o Jornalismo Esportivo, essa realidade é ainda mais desafiadora. Apesar de hoje ainda não haver um equilíbrio no número de homens e mulheres falando de esportes nos meios de comunicação e ser uma área dominada por eles, é notório que o cenário teve mudanças e é possível ver mais a presença feminina nesse lugar.

Com o crescimento delas na editoria de Esportes, o interesse em motivar mais jovens a exercer a profissão também aumenta. Grandes nomes como Regiani Ritter, Isabela Scalabrini, Renata Fan e Glenda Kozlowski abriram as portas para que hoje possamos ver os programas esportivos sendo compostos pelas mulheres e falando mais sobre a participação delas em várias modalidades esportivas.

O chute inicial

A primeira mulher a trabalhar com esporte no jornalismo que se tem relatos, foi Maria Helena Rangel. Por volta de 1947, Rangel, que cursava jornalismo na Faculdade Cásper Líbero, fez participações na Gazeta Esportiva. Além de jornalista, ela era atleta de arremesso de peso e tinha formação em Educação Física pela Universidade de São Paulo (USP).

Alguns anos antes, porém, a carioca Mary Zilda Sereno já se aventurava no fotojornalismo em São Paulo. Suas primeiras fotos já foram ligadas ao futebol. Depois da Copa do Mundo de 1934, ela vendeu para o jornal O Globo uma foto de uma italiana que vivia no Brasil, comemorando o título de seu país natal, mas ela não foi contratada pelo periódico simplesmente por ser mulher. Sereno continuou tirando fotos de todas as editorias, mas sempre com foco no esporte.

Na televisão, Marilene Dabus se destacou após participar de um programa de conhecimentos gerais sobre o Flamengo na TV Tupi. Após sua participação, a jornalista foi contratada para ser setorista do clube no jornal Última Hora.

Mulher adulta sorrindo vestindo a camisa do Flamengo
A jornalista Marilene Dabus - Foto: ge.globo/Reprodução

Marilene ganhou ampla notoriedade na cobertura jornalística do Flamengo e em meados dos anos 1980, deixou as redações para assumir o cargo de Vice-Presidente de Comunicações do clube. Ela teve grande impacto dentro da equipe da Gávea. Partiu de Marilene a ideia de batizar o Centro de Treinamentos (CT) de ‘Ninho do Urubu’.

Outra pioneira na cobertura esportiva foi a apresentadora Claudete Troiano, conhecida por ser a primeira mulher brasileira a narrar uma partida de futebol. Em entrevista ao programa “Sensacional" da RedeTV, Claudete afirma que o trabalho dela foi muito importante naquela época pois a mulher era colocada como objeto decorativo em programas esportivos. Atualmente, a jornalista apresenta programas de televisão voltados ao público feminino.

Mulher loira de costas com microfone usando roupas brancas, entrevistando um homem negro sem camisa
Claudete Troiano entrevistando Pelé - Foto: Museu do Futebol/Reprodução

Porém, uma das maiores desbravadoras do jornalismo esportivo foi Regiani Ritter. Sua trajetória na editoria teve início nos anos 1980 ainda na Rádio Gazeta, cobrindo folgas de repórteres nas partidas de futebol; com o tempo, Ritter foi pegando gosto pela coisa e se tornou comentarista do programa Mesa Redonda na TV Gazeta.

Mulher loira com microfone usando roupas brancas, entrevistando dois homens
Regiani Ritter no vestiário entrevistando jogadores - Foto: Portal Mídia Esporte/Reprodução

Uma das marcas de Ritter era não ter receio de entrar nos vestiários após os jogos para conseguir entrevistas com jogadores. Em entrevista ao Uol, ela afirma: "correu jogador para todo lado. Mas, mais para frente, eles passaram a agir normal. Na quarta vez que entrei eles já estavam acostumados comigo".

Graças ao trabalho de Regiani, diversas outras mulheres ingressaram na cobertura de esportes entre os anos 1980 e 1990, como Kitty Balieiro, Simone Mello, Abigail Costa, Elys Marina, Lia Benthien, Marisa de França, Wania Westphal e Isabel Tanese, por exemplo. Tanese, por sua vez, foi a pioneira na direção de um caderno esportivo de um jornal impresso brasileiro e durante anos foi a titular da seção de esportes do Estado de S. Paulo.

Todas essas abriram espaço para Isabela Scalabrini tornar-se a primeira a apresentar o Globo Esporte - renomado programa esportivo da TV Globo. Mesmo com algumas mulheres nas redações, o preconceito ainda era muito grande. Para Isabela, “naquela época, eu não encarei como um obstáculo a ser superado. Eu simplesmente fui em frente. Eu sabia que entendia de futebol e que amava meu trabalho. Acho que essa atitude pode ter despertado a vontade de muitas mulheres fazerem o mesmo.”

Mulher de cabelos castanhos em frente a um fundo verde que tem impresso as escritas "Globo Esporte"
Isabela Scalabrini na apresentação do Globo Esporte - Foto: X/Isabela Scalabrini/Reprodução

Anos depois, em 1997, foi a vez de Luciana Mariano abrir novas portas para novas meninas. Após vencer um concurso que buscava uma voz feminina para as partidas de futebol, promovido pela Rede Bandeirantes, ela foi a primeira mulher narradora da televisão brasileira. Luciana concedeu uma entrevista ao site Notícias da TV e afirma ter sido muito difícil narrar futebol por conta da falta de oportunidades. Além disso, ela conta que não tinha em quem se espelhar.

A última grande conquista das mulheres na cobertura esportiva veio em 2022, com Renata Silveira. A jornalista tornou-se a primeira voz feminina a narrar uma partida de futebol na história da TV Globo. De lá pra cá, ela foi conquistando ainda mais espaço na TV aberta, narrando partidas de grandes clubes da Série A do Campeonato Brasileiro, além de ter sido a primeira mulher a narrar um jogo da seleção brasileira.

Driblando os desafios

Apesar de haver muitas referências na área que abriram muitas portas, os obstáculos ainda são desafiadores para as mulheres no Jornalismo Esportivo.

Renata Mendonça, comentarista de futebol do Grupo Globo e co-fundadora do Dibradoras – veículo de comunicação que destaca o protagonismo das mulheres no esporte –, nos conta que a mulher precisa sempre provar que é capaz de conhecer o assunto, exercer sua função e merecer estar ali. “Costumo dizer que quando você faz uma entrevista de emprego para um cargo numa redação esportiva, se você é um homem, você parte da nota 0 e vai pontuando conforme for agradando nas respostas. Se você é uma mulher, você parte do -5”.

Renata, que também atua há quatro anos como colunista de Esportes na Folha de São Paulo, relata que essa cobrança já fez com que ela duvidasse de si mesma no início da carreira, quando ouviu de um chefe que não confiava nela para cobrir os times e jogos, em razão de ela ser mulher. "Esse é o tipo de coisa que cansa, sempre ter que convencer os outros de que você é capaz de desempenhar seu trabalho”, afirma.

Além de enfrentar a pressão imposta por seus superiores e colegas de equipe, as jornalistas precisam lidar com a opinião dos torcedores e telespectadores. Sobre isso, Isabela Scalabrini observa que ao longo de sua trajetória na editoria de Esportes, ela nunca deixou de fazer alguma reportagem por ser mulher e a Rede Globo a colocou como pioneira para cobrir o futebol, mesmo sendo difícil lidar com os comentários vindos das arquibancadas. Ela diz que além de piadas machistas e xingamentos, a pergunta que mais ouvia era: “você entende de futebol?”.

Scalabrini não sabia muito como o público avaliava seu trabalho, pois na época a internet e as redes sociais ainda não estavam presentes como hoje. “A imprensa escrita registrava que a repórter Isabela Scalabrini, que tinha se destacado nas reportagens em campo, agora, também estava ganhando espaço no estúdio. Além disso, era um reconhecimento da Globo de que meu trabalho estava repercutindo e era bem feito”. Logo depois de sua estreia no Globo Esporte, ela foi escalada para apresentar o Esporte Espetacular, outro programa esportivo da grade, mas com uma duração maior e transmitido para todo o país, aumentando a audiência de Isabela.

Ainda não é o apito final

Isabela Scalabrini conta que fica muito feliz ao ver estudantes e jornalistas mais jovens dizerem que se inspiram nela. Hoje, ela reconhece que abriu caminhos para as mulheres nas coberturas esportivas e enfatiza que naquela época não encarava como um obstáculo a ser superado. Ela também cita que no começo de sua carreira, havia poucas mulheres nesse meio, algumas trabalhavam nos jornais impressos e era raro ver e ouvir uma mulher nos treinos de clubes ou nos estádios. A jornalista termina dizendo que em 1986, ano em que cobriu a Copa do México, era rara a presença feminina entre os jornalistas que cobriam o mundial.

Com o intuito de possibilitar a participação das mulheres em um meio que ainda é tão dominado por homens, cinco mulheres fundaram o Dibradoras, em maio de 2015. A jornalista Renata Mendonça foi uma delas. Apaixonadas por esportes, elas sentiam falta de uma cobertura que incluísse a mulher como personagem principal do esporte em diversas frentes: jornalista, atleta, árbitra, treinadora etc. “No começo, a abordagem era voltada ao futebol feminino. 2015 era ano de Copa do Mundo e não se ouvia falar sobre o Mundial das mulheres na imprensa ou redes sociais. [...] Após o Mundial do Canadá vieram os Jogos Pan Americanos e decidimos ampliar a cobertura sobre a presença feminina e passamos a abordar as outras modalidades também”, conta a comentarista.

Três mulheres sorrindo com roupas coloridas em um galpão com fotos coloridas coladas na parede
Renata Mendonça, Roberta Cardoso e Angélica Souza são as fundadoras do canal Dibradoras - Foto: Lívia Villas Boas/Estadão/Reprodução

Hoje, o projeto também é formado pela publicitária Angélica Souza e pela jornalista Roberta Nina Cardoso, carregando o lema “Lugar de mulher é no esporte!”. A partir dessa iniciativa, elas puderam dar mais atenção para questões importantes como a ausência de rostos femininos na cobertura esportiva, a falta de visibilidade para o futebol feminino e a cobertura objetificada que se fazia de esportes femininos. “Já vemos mulheres narrando e comentando futebol em quase todas as emissoras e também nos canais de streaming, há muito mais transmissões de jogos do futebol feminino, e há um olhar mais adequado para cobrir as atletas sem aquela sexualização que sempre sobressaía. Ainda é preciso avançar muito mais e principalmente abrindo espaço para mulheres negras terem também protagonismo, mas seguimos na luta para mais mudanças”, destaca Renata.

O Dibradoras segue mostrando que as meninas podem praticar e gostar de esportes, bem como exercer uma função relacionada a qualquer modalidade. Para isso, Renata relata que os planos futuros visam garantir mais incentivo e visibilidade. A jornalista aponta que a plataforma está focada na cobertura in loco das Olimpíadas de Paris, trazendo notícias do futebol e de outras modalidades disputadas por mulheres.

Cartão vermelho para o preconceito

Scalabrini destaca que foi e tem sido demorada a aceitação feminina nos comentários e na narração de jogos e aponta a estrutura machista da sociedade como um reflexo do pouco espaço da mulher.  “Vocês conhecem alguém que muda de canal quando a narradora é mulher?”, ela questiona. Com isso, Scalabrini traz à tona o fato de que ainda há resistência de alguns homens em relação à participação das mulheres na cobertura de futebol, especialmente nessas funções de destaque.

Renata Mendonça, por sua vez, conta que sua causa de vida é a luta pelo espaço da mulher na área. Ela se orgulha ao dizer que conseguiu juntar em seu trabalho a causa com a paixão por esportes e enfatiza: “meu sonho é poder ver no futuro um mundo onde as meninas sejam tão incentivadas à prática esportiva quanto os meninos são, acho que os benefícios disso seriam imensuráveis”. Ela finaliza dando ênfase à união das mulheres nessa luta e incentiva aquelas que querem seguir seus passos, pois sabe que o caminho é árduo.

É fato que as mulheres estão garantindo seu espaço no Jornalismo Esportivo. Porém, podemos ver que foi algo atrasado e lento. Mas dia a dia essas bravas mulheres vão escrevendo novos capítulos dessa história.

Maria Helena Rangel, Regiani Ritter, Claudete Troiano, Luciana Mariano e tantas outras abriram espaço para que hoje, Natalie Gedra, Gabriela Ribeiro, Estella Gomes, Renata Silveira e outras meninas e mulheres sonhadoras, pudessem ocupar lugares de destaque na TV, rádio, jornais e redes sociais. Que no futuro, mais referências femininas estejam em evidência em diversos âmbitos do esporte.

Com a crescente presença feminina nos veículos de comunicação, a visibilidade das atletas e suas respectivas modalidades tendem a aumentar e consequentemente, despertam o interesse da audiência feminina. Dessa forma, veremos mais jovens querendo seguir carreira tanto praticando esportes, quanto falando deles, além de motivar e abrir mais portas para outras que virão.