Se parar, eles te engolem

Todo dia uma correria
por
Victória Toral de Oliveira
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06/11/2024 - 12h

 

Todo dia a mesma correria. Acorda às 5h, toma banho e corre para pegar o trem. 
- Mas e o café, meu filho? - Não dá tempo, se parar eles te engolem. Como no caminho. 
Vagão lotado, não tem onde sentar. Sardinha humana, que humilhação diária. “Ah mas não pode parar, se parar, eles te engolem”. Chega na empresa às 7h30, é estagiário, recebe como estagiário, mas é cobrado da mesma forma que o CLT que trabalha do seu lado. Mas se reclamar eles te engolem. Trabalha, trabalha e trabalha, porque já sabe se parar, eles te engolem. Já é meio dia, a barriga está gritando por comida. Ele vai ao encontro da sua tribo, os outros estagiários. Senta na mesa, abre sua marmita, porque o VR não permite comer todos os dias na praça de alimentação. A mãe fez sua comida favorita, strogonoff de frango. O sorriso estampado no rosto, uma alegria no meio da semana corrida. 
Depois de comer, precisa voltar para o trabalho, ainda tem muitas pendências. Tem reunião, integração entre estagiários de outros setores e mais trabalhos chegando, mas não pode parar, pois se parar eles te engolem. 
São 15h30, tem que correr pra faculdade, para ter tempo de estudar para a prova. O ônibus passa 15h40, se perder tem que pegar o das 16h10 e aí chega tarde na faculdade. Corre para o ponto. Vê o busão, mas está longe, grita para o motorista, é seu Luiz, ele é gente boa. 
Entra no ônibus, bate o desespero, será que ainda tem crédito? Tem que ter. Foi na segunda passada ou retrasada que carregou o cartão. Foi passada, tem que ter sido na passada. Passou, ainda tem R$ 15, dá para seis dias. Ah não, não são seis dias. São dois dias. Sexta, antes de voltar para a casa precisa recarregar. Melhor, recarregar quando for para a faculdade. 
O cansaço bateu, um cochilo antes de chegar no ponto seria bom. É um longo percurso até a faculdade. O cochilo veio e o ponto também. Despertou no momento certo. O relógio marca 16h40 e vai dar tempo para estudar. A biblioteca está vazia, mas antes um café. Na cafeteria, o café expresso é R$  5,50, na barraquinha do Valdir é R$  3. É final do mês e o VR está quase acabando, vai ser com seu Valdir. 
São três textos separados para a prova, cada um com 15 páginas. O professor já avisou, a análise tem que abordar os três. Foco total, não deu para ler antes, são 9 disciplinas, mais o estágio. Tem que dar agora. 
O relógio marca 18h30, a aula vai começar. Tem que correr pra sala. O professor ainda não chegou. A prova será escrita, pega a caneta e toma seu primeiro copo de água do dia. Depois dessa disciplina, tem mais uma que vai até às 22h30. 
- Será que o professor libera mais cedo? 
Foco na prova!
O professor já entregou a folha, ele quer uma análise crítica, três páginas no mínimo. 
Acaba a primeira aula, o sono já chegou e a fome também, mas se parar eles te engolem. Tem ainda a última aula e depois dela mais um ônibus antes de chegar em casa. O tempo da segunda aula passou rápido, já o ônibus, ele passa em 20 minutos. Ainda tem mais uns 40 minutos até o ponto. É preciso correr para não atrasar e ter que esperar mais uma hora pelo próximo ônibus.
Chega em casa, por volta da 00h00, a família toda dormindo, mas deixaram comida no forno.
De banho tomado, corpo relaxado e despertador programado para daqui cinco horas é momento para descansar. Realmente ele vai despertar? Vai! Foi programado. Então, agora dá para parar, mas não totalmente, porque se parar, eles te engolem. 
A rotina se repete cinco vezes na semana e nos dias que seriam de descanso, tem texto para ler, trabalho para fazer e o momento de lazer só se der tempo, porque se parar, eles te engolem.
Sempre está dando o melhor de si, mas sabendo que não é suficiente. Falar mais de dois idiomas é fundamental para ter uma pequena chance profissional. 
Aceitar todos os pedidos, sem reclamar ou questionar, até ser efetivado. Para depois a rotina ficar mais intensa e você não pode parar, porque se parar, eles te engolem. 
São de quatro a cinco anos nesse ritmo e após a formação, o descanso não é atingido. Vai se emendando exaustão atrás de exaustão, para não parar e ser engolido. 
O tempo passa e a rotina fica cada vez mais intensa. A vida pessoal? Não existe. Momentos de pausa e de descanso estão cada vez mais distantes.
A exaustão já tomou conta de tudo. Eles te engoliram a muito tempo, só você não percebeu. Sem saber quem você é, sua vida parou antes mesmo de começar. 

O paulistano passa, em média, 2h47min diariamente no transito, segundo pesquisa do Ipec em 2023. Foto: Victória Toral/arquivo pessoal
O paulistano passa, em média, 2h47min diariamente no transito, segundo pesquisa do Ipec em 2023. Foto: Beatriz Toral/arquivo pessoal