Saúde privada vê clientes, e não cidadãos, diz professora

por
Vitória Macedo
|
19/05/2020 - 12h

O novo coronavírus encontrou a sociedade brasileira em uma situação frágil do ponto de vista econômico, social e político. Além das desigualdades latentes, o desemprego estava em alta e Brasília em chamas com a acirrada disputa entre os poderes Executivo e Legislativo. Como se não bastasse, o presidente Jair Bolsonaro e o então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, expunham publicamente suas divergências. A pandemia traz grandes impactos não só para a economia, mas também para o sistema público de saúde.

Segundo a professora de economia da PUC-SP Cristina Amorim, estes impactos já são visíveis. Em entrevista à TV PUC, ela citou as demissões que estão ocorrendo em diversos setores e disse que, com indústria e comércio parados, há riscos de desabastecimento de produtos essenciais. “Os próximos dois ou três anos serão reflexo dessa violenta redução de demanda e de oferta. A retomada do crescimento e da renda dos consumidores não ocorrerá em poucos meses”, avaliou.

Em relação aos gastos públicos, muitas pessoas acreditam que a gestão dos Estados é similar à gestão individual, ou seja, quando o poder público gasta mais do que arrecada, assume uma dívida que põe em xeque o bem-estar social. No entanto, a professora explicou que o argumento é equivocado e não justifica a redução de investimentos na saúde.

“A dívida pública é um instrumento de política econômica, e não um indicador de Estado perdulário. Se a dívida é excessiva ou inadequada à economia, depende da percepção do credor, e não da sua relação como proporção do PIB”, disse Amorim, que pesquisa a economia e a gestão da saúde.

No atual cenário, o sistema público de saúde precisa mais do que nunca de investimentos. A economista afirmou que o Sistema Único de Saúde (SUS), disponível para qualquer pessoa em território brasileiro, tem uma capacidade única de diagnosticar e atender milhões de pessoas, coisa que nenhum plano de saúde faz. Por isso, ele é essencial para o enfrentamento do novo coronavírus.

“A Covid-19 é uma pandemia, ataca populações. O sistema privado de saúde não alcança os cidadãos, apenas os seus clientes”, afirmou Amorim, acrescentando que, apesar de o Brasil ser um país em desenvolvimento, o SUS é superior em relação ao sistema de saúde pública dos Estados Unidos e de muitos países da Europa.

Ainda assim, no Brasil há um processo cada vez mais acentuado de privatização da saúde. Em 2015, foi aprovada a participação majoritária de empresas estrangeiras no setor. Planos como a Amil foram comprados. Em função da pandemia, hospitais públicos e privados de muitos estados, como São Paulo, Rio de Janeiro e Ceará, já estão lotados.

O SUS enfrenta problemas há tempos, principalmente no que diz respeito ao financiamento. Em seu artigo “Sistema Único de Saúde (SUS) aos 30 anos”, publicado em 2018 na revista online Ciência & Saúde Coletiva, Jairnilson Silva Paim, do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia, aponta que os municípios foram os entes que sustentaram o SUS para a população. “Mais de 40% dos estados não aplicam o mínimo de 12% na saúde, contudo 100% dos municípios aplicam acima do mínimo de 15% na saúde, chegando à média de 26%.” Diante disso, a estagnação econômica de muitos municípios agrava o problema do SUS, pois as prefeituras ficam à mercê das transferências da União.

Apesar de o SUS possuir conhecimentos acumulados e profissionais experientes, ainda depende do repasse do governo federal, cada vez mais restrito devido à lógica de eficiência, própria do capitalismo e do Estado neoliberal. Isso é expresso na Emenda Constitucional 95, que provocou a diminuição dos gastos públicos e significou uma perda de cerca de R$ 20 bilhões na saúde nos últimos dois anos. O bom funcionamento da rede básica de saúde pode ser essencial para evitar o colapso do sistema como um todo. “O que não pode faltar é a quantidade suficiente de recursos financeiros, materiais e humanos para o SUS tocar essa situação e ajudar a debelar a crise”, expõe a professora de economia.

Para que o sistema não fique sobrecarregado, a pesquisadora acredita ser fundamental o cumprimento do isolamento social recomendado pelo Ministério da Saúde, com base em critérios médicos e científicos. Amorim alertou que quanto menos infectados demandarem assistência médica e hospitalar, maior a capacidade de atendimento e menor o número de vítimas fatais.

A economia é afetada no mundo inteiro. O Fundo Monetário Internacional (FMI) pediu aos países do G20, os mais ricos do mundo, que suspendam o pagamento das dívidas dos mais pobres, e está abrindo linhas de crédito para economias que precisam de dinheiro. Amorim avaliou que para o Brasil é mais interessante recorrer a essas linhas de crédito do que vender as reservas cambiais.

“No Brasil, a União tem recursos para minimizar os efeitos da nossa crise tríplice de saúde, econômica e política. Há várias fontes de recursos. Primeiro a redução da taxa de juros dos últimos quatro anos reduziu o principal dreno dos recursos brasileiros, o custo da dívida interna, e é muito provável que a taxa de juros chegue a zero nos próximos meses”, explicou a economista.

Outra fonte importante de renda que ajuda a diminuir a crise é a emissão de moeda. Segundo Amorim, não há chance de inflação nesse ciclo econômico. “Sempre há outros recursos fiscais que poderiam ser realocados para o combate do coronavírus”, complementou. Mesmo que o Brasil tenha conhecimento em saúde pública e recursos financeiros, a professora acredita que “ a crise política e a decorrente falta de liderança é um entrave crítico para o enfrentamento da situação”.