Por Natália Matvyenko
Sob o sol de Rondônia, entre o barulho dos carros e o som distante das caixas de som que raramente tocavam funk, Catharina Lebre cresceu. Faltavam bailes, mas não vontade. Ela sempre sentiu que o corpo pedia movimento. Conta que anos atrás, Rondônia nunca teve a cena musical em destaque que o Pará teve, e muito menos a força de um Rio ou São Paulo, mas foi ali, no meio das ausências, que Catharina aprendeu a desenhar seus caminhos, estudante de medicina e uma menina que o que tem de cabelos longos tem de simpática e atenciosa. Nasceu e cresceu em Porto Velho. Morou primeiro num condomínio simples e depois num conjunto habitacional. Estudou em escola particular, mas sempre via a diferença entre sua realidade e a dos colegas mais ricos. Esse contraste foi o primeiro contato com o que mais tarde ela perceberia como desigualdade de origem.
Ela fala de um DJ chamado D. Silvestre com brilho nos olhos. D. Silvestre, DJ que viralizou no Tik Tok e Instagram nas festas de São Paulo, é de Rondônia ao contrário do que sudestinos achavam, por mais underground que sejam, caem no lugar de achar exótico, como se arte subversiva só brotasse do solo cinza da capital paulista. Há também o DJ Argel, do Pará, um tipo de artista que mistura o rock doido com o mandela e transforma o som em viagem. Uma vez, ele precisou levar uma caixa de som de barco até uma cidadezinha encravada no interior, o tipo de coisa que explica bem o corre de quem faz cultura na Amazônia.

A diferença entre os estados do Norte se sente até pela música. O Pará tem as aparelhagens, o tecnobrega, as festas que viraram lenda e que quem é da periferia paulistana tem contato. Rondônia de certa forma em divulgaço engatinha, parece que está sempre um passo atrás, como se o relógio cultural lá rodasse mais devagar. Catharina sabe que não é uma questão de atraso, mas de estrutura. O Pará é mais antigo, mais turístico, tem tradição. Rondônia ainda precisa lutar pra existir em qualquer conversa. Ela mesma viveu isso de perto. Na própria cidade, não há bailes de rua nem fechados. Quando muito, aparecem encontros de som automotivo no centro, sem o corpo coletivo da periferia dançando junto, sem o calor que transforma o som em comunhão. O que domina a cidade é o sertanejo, e quando o funk aparece, é o comercial. A cena mais alternativa quase não tem espaço.
Cath lembra de um lugar chamado Bar Esconderijo, o nome é autoexplicativo. Era o ponto de encontro de quem não cabia em lugar nenhum, gente preta, LGBT, periférica, artistas, curiosos. Lá, o som era resistência. Até que a festa foi invadida por um grupo bem emblemático que estrutura esse abafamento da cultura. A polícia entrou, levou tudo, caixas, fios, a esperança de mais uma noite sem medo. O bar fechou. E ela entendeu, como tantos, que até o pouco que se constrói é "brecado" quando vem das margens. Mesmo assim, não deixam de existir. Lebre entra no assunto da dança do funk paulista, manda links, vídeos, sons pra mostrar o que se ouve no Norte contrastando com o som estourado que tocam nas festas em galpões da Barra Funda, Luz e centro. Fala do rock doido do Pará, das danças, do carimbó. O carimbó, ela aprendeu a dançar, ritmo que é uma fusão da cultura originária e de povos de África. É dessas heranças que tatuam no corpo. Tudo se mistura. Quando viaja, busca o baile, qualquer baile. Foi em São Paulo que entrou num pela primeira vez. Depois veio o Rio, e cada cidade trouxe um ritmo diferente. Em São Paulo, ela sentiu o peso das chacinas, das memórias de Paraisópolis, das notícias que quase fizeram os bailes de rua de funk paulista perder o fôlego.
Tem repertório pra dar e vender, talvez seja por isso que o nome de D. Silvestre a toque tanto. Ele rompeu com a visão do sudeste, mostrou que dá pra sair de onde tudo parece longe e, ainda assim, fazer revolução com música, diga-se de passagem, um som muito autêntico. Mostra o caminho de quem precisou deixar o território pra florescer, como tantos artistas do Norte e de outras regiões, que só encontram espaço quando partem da sua casa pra conseguir espaço ironicamente até virtual. É bonito e triste ao mesmo tempo, como as coisas da vida que são subjetivas.
Voltando no nome do DJ Argel, que faz festas na rua, gratuitas. Mostra na fala que o norte é vasto, diverso demais pra caber num rótulo. E ainda assim, quando se fala em periferia, o imaginário corre pra São Paulo, pro Rio, pras favelas de concreto. Pouco se pensa nas periferias amazônicas, nas quebradas de madeira, nos corpos caboclos, pretos, indígenas que vivem outras distâncias. Catharina repete que a Amazônia é gigante, que não há uma só realidade. São mundos inteiros entre rios e poeira vermelha, gente que constrói cultura sem palco, sem investimento, sem holofote.
Quando fala de dança, a conversa muda de tom. Foi pela dança que ela entrou no funk, e é pela dança que se reconhece. Desde pequena, o corpo respondia ao som. Dançava Shakira em frente à reza, misturava gestos de devoção e gingado. A professora já debochou, dizendo que parecia cachorro se mexendo. Ela tinha doze anos. Ouviu piadas, enfrentou assédio, comentários que sexualizavam seu corpo infantil. Mesmo assim, continuou. Gravava vídeos, postava, insistia. A internet era o lugar onde podia existir. Rebolar virou resposta. O que era ofensa se transformou em força, já que, qual a melhor arma contra quem caçoa do que ser você mesma?
Lebre conta que ela e sua família ouviam bastante os clássicos da Furação 2000. O funk chegou como aquela visita que já é de casa. O que começou como diversão virou trabalho. Hoje, ela dança em shows, produz conteúdo, estuda a cultura que a formou e fala de assuntos muito pertinentes como preconceito sudestino no meio da cena de São Paulo, apagamento de povos originários e assuntos que passam batido para a maioria das pessoas, mas para Cath não. Fala com o cuidado de quem entende o valor de uma tradição oral. Pesquisa, entrevista, registra, pra que as vozes do Norte não se percam.
E mesmo com a rotina apertada, não para. Trabalha nos fins de semana como dançarina e performer nos palcos com a DJ Bonekinha Irakiana, nome forte da cena das DJ’s de funk bruxaria, estuda nos intervalos, se equilibra entre mundos que raramente se encontram. A cabeça de quem veio do Norte e o corpo de quem ocupa espaços onde poucos iguais chegaram.
Quando diz que faz medicina, o espanto aparece no rosto dos outros. Não porque duvidem da capacidade, mas porque não esperam ver uma mulher cabocla, artista, do norte do país, dentro de um curso cercado por privilégios. Catharina não precisa afirmar nada, o simples fato de existir ali já é resposta suficiente. Ela não esconde o cansaço, mas fala com serenidade.
Entre o batuque distante de um som automotivo e o silêncio do quarto onde grava seus vídeos cheios de energia, expressa o que é jovem. Não precisa de palco, nem de baile pra ativar o que mais sua alma pede. Ainda assim, sonha com o dia em que Rondônia terá o seu espaço. Onde meninas como ela poderão dançar sem medo, onde o corpo não será motivo de piada ou fetiche, mas de liberdade. Ela sabe que esse dia ainda demora, mas não deixa de dançar. Porque o movimento é também uma forma de oração. O corpo que insiste é o mesmo que transforma o chão duro em pista de dança. Quando fala da mãe, volta a reconhecer de onde veio. Diz que se alguém merece uma entrevista, é ela. A mãe estudava, trabalhava e cuidava dos filhos ao mesmo tempo. Foi com esse exemplo que aprendeu o que é esforço e constância, coisas que hoje sustentam sua própria trajetória entre a dança, o estudo e o trabalho. E, de algum modo, ela sempre encontra um jeito de fazer o som continuar.