Foto: Divulgação Instagram @thewarningrockband
“Se o rock é sobre rebeldia, não há nada mais rebelde do que ser mulher e continuar fazendo rock. Isso é resistência pura.”
A frase da escritora e musicista argentina Barbi Recanati sintetiza o espírito de uma luta esquecida: a das mulheres no rock.
Quando se pensa no gênero, a imagem mais comum que vem à cabeça é masculina: homens empunhando guitarras, quebrando instrumentos e ditando comportamentos. A maioria das bandas clássicas do rock é formada por homens. Mas essa ideia é uma distorção histórica. O rock nasceu do grito sufocado de mulheres, especialmente negras, que viveram à margem e transformaram dor em potência criativa. Ainda assim, foram sistematicamente apagadas da história.
Barbi Recanati, no livro Deusas do Rock (Editora Hipotética), busca resgatar essa narrativa e mostrar como o protagonismo feminino foi silenciado ao longo das décadas. “No começo, o rock não fazia parte do capitalismo, era expressão marginal, nascida nos esgotos do sistema. Quando foi apropriado pelas gravadoras, sofreu uma lavagem racista, sexista, classista e hegemônica. As mulheres que criaram o gênero foram empurradas para fora da própria história”, afirmou em entrevista exclusiva.
Esse processo começou nos anos 1950, quando os vocais intensos e as guitarras de artistas negras passaram a ser incorporados por homens brancos. A indústria musical rotulou parte da produção negra como “R&B”, separando-a do mainstream. Lucinha Turnbull, considerada a primeira guitarrista do Brasil, foi uma das pioneiras a fazer um solo de guitarra, mas sua trajetória permanece pouco conhecida.
Mesmo quando as mulheres conseguiam romper o anonimato, eram tratadas como exceção, fetiche ou motivo de chacota. Em 1992, por exemplo, o Nirvana convidou a banda feminina Calamity Jane para abrir um show em Buenos Aires. A reação foi misógina: o público vaiou, xingou e atirou objetos nas integrantes. Em protesto, Kurt Cobain se recusou a tocar os maiores sucessos da banda naquela noite. Mas o episódio marcou: o rock ainda não era um espaço seguro para mulheres.
“Esse episódio resume o que o rock fez com as mulheres: elas sempre estiveram lá, mas foram ridicularizadas ou transformadas em fetiche”, afirma Recanati.
Ela aponta ainda que o machismo sempre foi parte do imaginário roqueiro. Atitudes brutas, agressivas e sexistas eram vistas como rebeldia. E isso ajudou a associar o rock a uma masculinidade tóxica, criando um espaço excludente para outras expressões.
Ainda assim, muitas resistiram. Joan Jett, nos anos 70, integrou a banda feminina The Runaways, rejeitada por gravadoras. Criou seu próprio selo e se tornou ícone. Nos anos 90, Courtney Love liderou o Hole com raiva e lirismo, mas sua obra ainda é ofuscada pelo rótulo de “viúva de Kurt Cobain”.
Amy Lee, vocalista do Evanescence, mostrou que peso e sensibilidade podem coexistir no metal gótico. Hayley Williams, do Paramore, se tornou voz de uma geração emo-pop, misturando vulnerabilidade e força. Taylor Momsen, ex-atriz infantil, mergulhou no hard rock com o The Pretty Reckless, enfrentando preconceitos e reafirmando a resistência feminina.
Mais recentemente, o trio mexicano The Warning, formado pelas irmãs Daniela, Paulina e Alejandra Villarreal, vem se destacando em festivais internacionais. Começaram com covers de Metallica e hoje assinam suas próprias canções, cheias de identidade, maturidade e potência.
Recanati enxerga com esperança o futuro da música. Para ela, as cotas de gênero em festivais foram decisivas:
“Na Argentina, nos anos pré-pandemia, as bandas contratavam mulheres para cumprir cota. Parecia forçado. Mas depois da pandemia, surgiram dezenas de bandas jovens naturalmente mistas. O que antes parecia artificial virou o novo normal. Às vezes, é preciso forçar a mudança para transformar a cultura.”
O rock nunca foi naturalmente masculino — ele foi moldado assim por estruturas racistas, machistas e excludentes. Reescrever essa história é devolver o gênero às suas verdadeiras criadoras.