Por Rafaela Eid Lucio de Lima
O Jornalismo, profissão que investiga, discute, expõe fatos, ideias e argumentos, sempre é alvo da discussão sobre a imparcialidade: É neutro ou não é? Por mais que a sociedade queira acreditar na neutralidade das coisas, como na da tecnologia e do próprio Jornalismo, é fato que tudo tem estímulos ideológicos. Assim como um jornalista - com suas escolhas de palavras e argumentos - coloca seus pensamentos naquilo que escreve, os mecanismos tecnológicos também replicam aquilo que “pensam”, ou seja, o que aprenderam. Os robôs no Jornalismo podem ser vistos, por alguns, como uma saída para parcialidade humana, mas os algoritmos também são capazes de reproduzir preconceitos e estereótipos.
Segundo um levantamento feito pelo coletivo Pretalab - projeto que estimula a inclusão de mulheres negras na tecnologia e na inovação - juntamente com a consultoria ThoughtWorks, homens brancos, héteros e de classes sociais média ou alta são a maioria dos funcionários do setor de tecnologia. Nesse sentido, quando produzem os algoritmos, esses cientistas alojam seus preconceitos, mesmo que inconscientemente, já que vivem em uma sociedade estruturalmente racista e machista. Consequentemente, há casos como quando o Google Fotos rotulou, em 2015, um casal de pessoas negras como gorilas e quando, em 2020, o Twitter priorizava exibir rostos brancos nas imagens que também continham rostos negros, entre tantos outros.
Além disso, outro elemento importante, que colabora para que a discussão sobre a falta de parcialidade ou excesso dela no Jornalismo exista, é a narrativa, produzida pelos próprios veículos, de que os meios de comunicação jornalísticos são imparciais. Entretanto, essa é uma maneira de controlar e enganar reiteradamente os leitores. O viés encontra-se nas entrelinhas, na linha editorial, nas escolhas de posicionamentos, no que é publicado e, principalmente, no que não é publicado.
Como colocado pela autora Clarissa Peixoto, no texto Jornalismo, hegemonia e reações contra-hegemônicas: “A imparcialidade pregada pelos veículos de jornalismo hegemônico cai por terra diante das evidências de desequilíbrio entre versões do fato ou do acontecimento. Falsas equivalências buscam dar a mesma dimensão para temas situados em horizontes diferentes. A exemplo disso, podemos atribuir ao jornalismo tradicional uma parte importante do incentivo a narrativas da extrema direita. Não à toa, teve papel fundamental na promoção de Bolsonaro nos anos anteriores à eleição de 2018, apresentando seus posicionamentos como válidos na discussão entre contraditórios, sem realizar um debate crítico e aberto com a sociedade sobre o que significavam. Outra forma de enquadramento recorrente na imprensa hegemônica consiste em tratar sem equidade as relações de poder. Os contraditórios não são mediados para garantir um equilíbrio entre as narrativas quando não lhes convém. O discurso da imparcialidade valida posições de poder na compreensão do que é público e do que é privado (MIGUEL; BIROLI, 2010), sintetizando a realidade em versões polarizadas e estanques”. Essas e outras maneiras são utilizadas pela grande mídia para colocar sua opinião sem que seja tão explícita.
Sendo assim, tudo tem um viés, seja ele por interesses políticos, econômicos, sociais, privados, públicos, entre outros. No caso da grande mídia, o interesse econômico é o que dita o que será veiculado. A linha editorial dos jornais, como o Estadão e a Folha de S. Paulo, publica o que não vai de encontro com as vontades dos anunciantes. Nesse sentido, faz-se necessário questionar as tecnologias que compactuam com o discurso hegemônico da sociedade, em qualquer âmbito, até mesmo no Jornalismo, a fim de entender as tendências ideológicas dos algoritmos, como impactam a vida da sociedade pelos meios de comunicação e os próprios meios de comunicação.
COMO FUNCIONAM OS ROBÔS
Pensando nisso, então, mesmo que fossem robôs escrevendo notícias, eles teriam que continuar mantendo o padrão de quando são escritas por humanos. Em 2014, por exemplo, o El País Brasil publicou uma matéria com o título “O jornalismo enfrenta o desafio dos robôs que produzem notícias", dizendo que a agência Associated Press começava, naquele ano, a usar robôs para produzir notícias automaticamente. Cristina Pereda, jornalista que a escreveu, cita no texto que: “Os robôs são na verdade programas de computador que já conquistaram outros setores, como o de atendimento ao cliente, serviços de venda online ou os buscadores de informação. Mas seu uso nas redações é o último desafio ao qual o jornalismo deve enfrentar no trabalho dos meios de comunicação depois do surgimento da Internet, o que mudou para sempre a distribuição das notícias e esvaziou os modelos de negócio baseados na publicidade.” Pereda ainda cita outros veículos, para além da Associated Press, que já utilizavam os robôs: The New York Times e Los Angeles Times, por exemplo.
Vale ressaltar que o uso dessa tecnologia não é uma novidade nas redações, elas datam a década de 70, segundo o artigo O uso de robôs no jornalismo brasileiro: três estudos de caso. Eles eram utilizados na redação de previsões do tempo já naquela época. Mas o debate se intensificou depois que grandes veículos como os citados acima e outros, como The Washington Post, Le Monde, Forbes, Metropolis Daily, começaram a usar os robôs que utilizam softwares de Natural Language Generation (NLG), que consiste no uso de Inteligência Artificial (AI) programada para produzir narrativas escritas e faladas a partir de um dataset - conjunto de dados. A NLG produz conteúdos com “natural-sounding language”, ou seja, com uma linguagem que soa natural, de acordo com o site Tech Target. Além disso, ela funciona em 6 estágios: análise de conteúdos; entendimento de dados; estruturamento de documentos; junção de frases; estruturamento gramatical; apresentação de linguagem. Quando se fala, então, de robôs no jornalismo, “não estamos falando de robôs humanoides que trabalharão, lado a lado, com repórteres nas redações. Estamos sim falando de computadores, softwares, algoritmos, tabelas e bancos de dados”, trecho do artigo O uso de robôs no jornalismo brasileiro: três estudos de caso. Vale ressaltar que, no Brasil, também existem veículos que usam robôs como “jornalistas”: Aos Fatos, G1, Jota, entre outros.
Dessa maneira, os dados coletados pelos robôs, a fim de escrever notícias, são algoritmos que podem ser ensinados e que podem conter preconceitos. O racismo algorítmico, por exemplo, é uma das discussões mais atuais quando se fala do uso de IAs em diversos campos da nossa vida: redes sociais, aplicativos, reconhecimento facial, entre outros. Como fala o pesquisador Tarcízio Silva, autor do livro Racismo Algorítmico: inteligência artificial e discriminação nas redes digitais, em entrevista para o programa Bem Viver da Rádio Brasil de Fato:
“Racismo algorítmico é um termo [que está] sendo utilizado globalmente por estudiosos e ativistas que tentam entender como tecnologias digitais podem intensificar práticas racistas e manifestações do racismo estrutural em diversas tecnologias digitais que temos no nosso dia a dia. E essas tecnologias digitais, hoje, são impulsionadas, de certa forma, pela lógica e pela ideologia da Inteligência Artificial e do aprendizado de máquina. E, para além disso, as plataformas que utilizam essas tecnologias dominam praticamente todas as esferas da vida. São as plataformas de comunicação, mas também são as plataformas de trabalho, de comércio, até as plataformas de serviço. Então, os aplicativos de transporte, de entrega, são exemplos disso. Além disso, para falar um pouco mais dessa pervasividade das tecnologias em todas as esferas, a gente ainda pode pensar em aplicativos de paquera e aplicativos de saúde. E, nos últimos 10 anos, muitos estudos descobriram que algumas tecnologias podem esconder práticas racistas e outros tipos de práticas discriminatórias - também relacionadas a gênero, ou região, ou capacitismo, e assim por diante. Não que os algoritmos sejam racistas, porque a questão não é pensar que um software tem vontade própria, mas sim o inverso, algoritmo como um qualificador do racismo. Então, as práticas racistas e discriminatórias hoje [se] utilizam das tecnologias, ou seja, [se] utilizam também dos algoritmos para intensificar a exploração, que está ligada a exploração financeira também, exploração do trabalho, em várias esferas diferentes. E isso é um risco enorme porque pode infringir diversos direitos que envolvem minorias raciais, mas a população como um todo também”.
Diante do que foi exposto por Tarcízio, surge a pergunta: Como poderiam ser imparciais os robôs que atuam no Jornalismo? A resposta é que eles não conseguem ser neutros, já que podem replicar práticas discriminatórias, pois a Inteligência Artificial que os opera é tendenciosa. Então, a utilização desses mecanismos tem como objetivo automatizar as redações, precarizar o trabalho e agilizar os processos de elaboração de notícias, jamais tornar o Jornalismo e seus veículos mais imparciais. Nesse sentido, o debate sobre a neutralidade torna-se infrutífero. O Jornalismo é parcial e não há como, nem por meio de robôs, torná-lo um pouco mais neutro. O que a sociedade vivencia, atualmente, é uma tentativa lucrativa de espalhar por toda a parte o uso dos algoritmos e, portanto, bem-sucedida, já que a tecnologia é, por muitas vezes, bem aceita sem nenhum questionamento.
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