Risco à saúde cresce com falhas na regulação e mercado ilegal de medicamentos

De canetas emagrecedoras à cloroquina, o uso sem comprovação científica expõe a população a riscos e leva a Anvisa a reforçar a fiscalização
por
Juliana Salomão
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16/11/2025 - 12h

Por Juliana Salomão

 

O sonho do bem-estar e do corpo ideal move muitos brasileiros em busca de soluções rápidas. Pequenas doses, aplicadas com a leveza de um gesto cotidiano, parecem anunciar mudanças quase imediatas diante do espelho. Entre canetas e gotas que beiram o milagre, espalhou-se a esperança líquida de um emagrecimento rápido, uma promessa moderna de transformação. Para a biomédica Juliana Gonçalves, que dedica seus dias à radiologia, o caminho do emagrecimento não seguiu o roteiro esperado. Com um histórico de resistência à insulina, ela buscou na endocrinologia uma resposta para o próprio corpo. O primeiro plano trouxe resultados tímidos, quase como um sussurro diante do espelho. Foi então que decidiu apostar na caneta emagrecedora, enxergando nela a promessa de uma mudança mais verdadeira, refletida tanto no corpo quanto na forma de se reconhecer.

Os efeitos não se limitaram ao corpo. Internamente, vieram acompanhados de dores de cabeça, náuseas e uma sede constante. Entre todos, o que mais a abalou foi a queda de cabelo, algo comum no cotidiano, mas que dessa vez lembrava os dias de estresse e nervosismo intenso. Ainda assim, Juliana considera que a experiência trouxe aprendizados. Por ter iniciado o uso em um período em que pouco se falava sobre essas canetas, ela reforça a importância do acompanhamento médico e, no seu caso, o cuidado próximo de uma dermatologista.

A importância desse acompanhamento também aparece na experiência da médica veterinária Maristela Brun. Ela iniciou o tratamento com o medicamento após perceber que os ansiolíticos prescritos em um tratamento psiquiátrico haviam desencadeado compulsão alimentar. Depois de realizar exames, decidiu iniciar o uso do medicamento.

Embora a caneta emagrecedora tenha ajudado Maristela a reduzir o apetite e perder peso, o início e o fim do tratamento foram marcados por alterações mais intensas. A falta de fome a surpreendeu, enquanto a ansiedade e o apetite voltaram a se intensificar depois. A experiência mostra que, mesmo quando há resultados positivos, o processo pode apresentar oscilações que exigem atenção constante.

De acordo com Heloisa Salomão, Regulatory Affairs Manager na ReSolution Latin America e biomédica formada pela Universidade de Santo Amaro (UNISA), o uso do medicamento apenas para fins estéticos, sem prescrição médica ou com o objetivo de emagrecimento rápido, representa risco de automedicação, doses inadequadas e efeitos graves, como pancreatite, náuseas e efeito rebote. Ela ainda alerta que essa prática pode causar desabastecimento para quem realmente precisa do tratamento e contribuir para a normalização da automedicação, incentivada pelas redes sociais.

Esse cenário é potencializado pelo crescimento do comércio de medicamentos e cosméticos sem aprovação regulamentar nas redes sociais. Produtos como suplementos capilares, remédios para emagrecimento e cosméticos proibidos circulam livremente em sites, sem passar por testes de segurança, o que expõe os consumidores a riscos ainda maiores e reforça os problemas associados à automedicação.

Plataformas como Instagram e TikTok funcionam como canais de divulgação e venda, onde influenciadores digitais e até profissionais de saúde promovem medicamentos e cosméticos sem comprovação científica. Essa prática aumenta a procura por substâncias irregulares, e pessoas em busca de soluções rápidas acabam se automedicando. O aumento da venda das chamadas “canetas emagrecedoras” entre 2023 e 2024 é um exemplo desse mercado. Esse medicamento injetável é indicado para adultos com diabetes tipo 2 que não controlam a glicemia apenas com dieta e exercícios. O uso sem acompanhamento médico pode causar náuseas, vômitos, pancreatite e problemas cardiovasculares. Apesar das restrições, o produto se popularizou para fins estéticos.

Diante desse cenário, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) reforçou a fiscalização. Em 2024, aprovou a Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) nº 945, em vigor desde 2025, que define regras para pesquisas clínicas de medicamentos no Brasil. A agência também orienta os consumidores a evitar compras em canais não oficiais e buscar orientação médica antes de iniciar qualquer tratamento.

Em resposta ao uso inadequado dos medicamentos agonistas do GLP-1, a Anvisa adotou regras mais rigorosas para a venda. Desde junho de 2025, a prescrição deve ser apresentada em duas vias, com uma delas retida pela farmácia, e a venda deve ser registrada no Sistema Nacional de Gerenciamento de Produtos Controlados (SNGPC). A receita tem validade de até 90 dias. Essas medidas buscam reduzir a automedicação e proteger o acesso de pacientes com indicação médica real, já que o uso indiscriminado pode gerar desabastecimento. Além disso, a Anvisa reforça a necessidade de combater a normalização da automedicação incentivada pelas redes sociais.

Regulamentação Sanitária

A pesquisa clínica é a base para garantir que novos medicamentos e tratamentos sejam seguros e eficazes. Esse processo rigoroso, que envolve estudos controlados com voluntários, é fundamental para avaliar efeitos terapêuticos, dosagem e possíveis efeitos adversos antes que um produto chegue à população. Sem essa etapa, não é possível confirmar se um medicamento oferece benefícios reais ou representa riscos à saúde.

Todo o processo é guiado por protocolos éticos e mecanismos de proteção. As normas exigem consentimento informado, supervisão médica e revisão por comitês de ética, assegurando que os voluntários entendam os procedimentos e potenciais efeitos adversos. Esses mecanismos são essenciais para proteger os participantes e garantir que os resultados sejam confiáveis e cientificamente válidos.

Falhas na regulamentação e na fiscalização podem permitir o uso de medicamentos sem comprovação científica. Um exemplo foi o uso da cloroquina durante a pandemia de Covid-19. Apesar de ser utilizada há décadas para malária e doenças autoimunes, sua adoção em larga escala se deu mais por pressão política do que por evidências clínicas, em um contexto de falta de monitoramento rigoroso.

A biomédica esclareceu que o episódio deixou claro que o rigor científico é inegociável e que estudos com falhas metodológicas não podem sustentar recomendações terapêuticas ou decisões regulatórias. A transparência e a ética são fundamentais para evitar a desinformação. A experiência com a cloroquina contribuiu para fortalecer a regulação sanitária, reforçando a necessidade de decisões baseadas em evidências sólidas para garantir a segurança e a eficácia dos tratamentos.

Estudos conduzidos no Brasil e em outros países, como os da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), apontaram que não havia eficácia comprovada do fármaco contra a Covid-19. A Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) alertou para riscos adicionais, como efeitos cardíacos. Com base nessas evidências, a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomendou a suspensão do uso.

Impactos Globais

No cenário global, os medicamentos também são impactados por medidas políticas entre os países, como a aplicação de uma taxa de 50% pelos Estados Unidos sobre produtos exportados do Brasil, que afeta especialmente os medicamentos emagrecedores à base de GLP-1, estimulando a produção nacional e fortalecendo a indústria local.

Além disso, a patente da Liraglutida, princípio ativo das canetas emagrecedoras Victoza e Saxenda, teve sua exclusividade mantida por liminar concedida pela Justiça Federal. A decisão garante a continuidade do fornecimento regulamentado e contribui para o controle do mercado interno.

Os biológicos são produzidos a partir de DNA recombinante, como a insulina humana, utilizada no tratamento do diabetes. Sua produção é complexa e exige regulamentação específica. Já os sintéticos, produzidos por síntese química, são submetidos a protocolos clínicos e regulamentação estrita. Eles oferecem dados mais sólidos sobre eficácia e riscos, mas também exigem monitoramento contínuo.

A escolha entre os tipos de medicamento deve ser baseada em orientação médica e evidências científicas. De acordo com a OMS, cerca de 40% da população mundial usa algum tipo de medicina natural, mas menos de 20% desses produtos têm comprovação científica robusta. No Brasil, a Anvisa aprovou em 2024 um guia específico para ensaios clínicos de medicamentos fitoterápicos, visando aumentar a segurança e a credibilidade dos produtos de base natural.