O cartunista e saxofonista Ricardo Aroeira nasceu em Belo Horizonte, Minas Gerais, em 18 de maio de 1954. Fruto de pai jornalista e mãe professora, desenvolveu seu aprendizado, como ele mesmo frisa, na oficina de sua família.
Em meados de 2019, Aroeira foi alvo de um processo movido por Rodrigo Fux, após uma charge postada em 2018, na qual o abraço entre o então candidato à Presidência Jair Bolsonaro e o Primeiro-Ministro israelense, Benjamin Netanyahu, formava uma suástica. Já em Julho de 2020, Aroeira foi alvo de um processo protocolado na PGR, referente a outra charge, na qual o Presidente da República Jair Bolsonaro, segurava um pincel e uma lata de tinta preta em suas mãos após pintar as pontas da cruz vermelha de preto. Em solidariedade a Aroeira, mais de 400 charges replicando esse motivo principal foram publicadas por chargistas brasileiros e estrangeiros. A campanha #somostodosaroeira gerou a "Charge Continuada", que venceu o Prêmio Especial Continuado Vladimir Herzog em 2020.
Como você realmente começou no ramo do cartunismo ? Minha trajetória começa no nepotismo, antes do cartunismo, porquê meu pai era jornalista do Jornal Minas e a coluna de esportes era dele, e antes disso, eu comecei ilustrando os livros da minha mãe que era pedagoga, na época ainda não, era professora, mas estava fazendo livros paradidáticos e achou que ficaria uma coisa melhor do que eles tinham feito no primeiro volume. Alguns anos depois, fiz também as apostilas do meu pai que era professor de desenho, posteriormente a coluna dele.
Como foi o processo de mudança entre o jornalismo esportivo para a politica ? Quando eu comecei lá no Jornal Minas, ilustrando a coluna do meu pai, o editor geral do jornal gostou dos meus desenhos e me chamou e perguntou se eu queria fazer charge política, eu claro, não sabia direito fazer isso, mas fiz e de certa fora, assim comecei antes do governo Geisel, antes dele tomar posse, mas a transição para a charge política, acontece assim, porque havia a tradição de charges políticas nos jornais mesmo durante a ditadura militar. Mais tarde, voltei à grande imprensa na mesma situação, te interessa fazer charge política?.
“Meu aprendizado sobre política ocorre no movimento estudantil e na reconstrução da imprensa sindical”.
Qual o maior desafio hoje para o cartunista na elaboração de charges políticas ? Eu achava, quando eu comecei minha carreira de chargista, que o humor era a simplificação, mas fui percebendo que a simplificação acaba sendo mais injusta do que deveria e simplificar dá origem a uma compreensão muito diferente do que deveria. No processo de construção da minha visão de mundo em charge, de como eu deveria fazer, eu fui complicando mais a charge do que simplificando. Acho melhor você explicar um pouco mais do que cometer um equívoco. Então comecei a compreender que é muito importante você olhar. Na verdade, eu trouxe para o cartoon o padrão que eu fui aprendendo durante o meu trabalho com a educação. Então assim, hoje em dia, eu não simplificaria mais, prefiro complicar, mesmo que, a charge perca em termos de credibilidade, que menos gente entenda.
Em 2019 houve uma polêmica envolvendo uma charge sua sobre o presidente Jair Bolsonaro. Como foi lidar com essa situação diante desse governo que estava entrando? Como foi para você lidar com essa situação ? A charge na verdade é o seguinte: os dois se abraçam e no abraço os braços formam os braços da suásticas. Eu quando faço charges que envolvem o premiê israelense, eu tomo cuidado quando eu falo sobre a questão palestina, eu tinha tomado cada vez mais cuidado de não usar o símbolo da estrela de Davi, porquê muitos amigos judeus da esquerda falam o seguinte: Esse símbolo engloba, diz que todos os judeus são assim e não é verdade. Agora, ele precisa ser criticado (Bolsonaro). Esse ai me gerou o problema com o Fux, mas já fui processado por ele, candidato, por outra charge. Por que eu uso? Eu uso os símbolos da suastica como o mal, mas eu não estou sendo equivocado na definição, ele tem muitas das características do fascismo e do nazismo, inclusive o disfarce de ser o defensor dos povos, mas principalmente a perversidade que o fascismo tem.
Como foi a sua reação ao saber tudo isso? Como você está levando tudo que o governo tentou censurar? A primeira sensação foi de incredulidade, algumas pessoas começaram a me mandar solidariedade pelo ”zap” e pelo facebook e eu fiquei assim, solidariedade pelo quê? O que aconteceu comigo que eu ainda não senti? E ai me falaram: “O ministro da justiça twittou hoje que você poderia ser imputado por crime. Mais tarde, twittou que tinha enviado [o caso] à PGR (Procuradoria-Geral da República). Eu fiquei sabendo através das pessoas e depois fui atrás dos tweets e vi o que tinha acontecido. Pânico. Primeira coisa é 'o que é isso?' Eu não tenho nem advogado . E a segunda coisa é que 10 advogados todos pro Bono apareceram. Eu percebi que já existe uma rede de solidariedade funcionando no Brasil a um bom tempo para não deixar, digamos assim, as vitimas desse tipo de arbitrariedade completamente desprotegidos. A segunda coisa foi que imediatamente os cartunistas fizeram a Charge Continuada. O Duque, um cartunista de Minas, entrou com a Pirralha, que é o coletivo de cartunistas, de fazer a charge continuada. O Presidente da República pede a sua massa apoiadora para invadir hospitais, a gente só vê isso no fascismo, ai eu fiz a charge, sabia que ela seria um pouco tensa, mas não imaginava o tamanho do pepino. O próprio delegado que me investiga, que toma meu depoimento, muito cortês, a escrivã também, você percebia no depoimento que ele mesmo estava constrangido de fazer aquilo. Aos poucos fui percebendo que foi um grande tiro no pé. E também percebi que a capacidade da sociedade de reagir a alguns absurdos é muito rápida. Agora no desfecho do caso, a Procuradoria recusou o processo, simplesmente não há razão para abrir o processo.
“Foi uma grande bobagem do governo”
Como você esta lidando? Você sente medo depois de tudo isso que aconteceu ? Eu sinto medo o tempo todo. Eu sinto mais medo agora do que na outra ditadura, em parte porquê eu era jovem e jovem não sente tanto medo assim. E também porque a outra ditadura o pessoal tinha um plano e nessa o pessoal não tem. Tenho medo, mas estou mais seguro do que eu imaginava. Existe uma rede de proteção que funciona. Eu parei de anunciar meus shows, eu sou músico e parei de anunciar meus shows.
Qual é a sua relação com os demais cartunistas famosos no cenário brasileiro? Vocês tem contatos? Já fizeram colaborações ? Os cartunistas, por incrível que pareça, são um grupo muito amigável, muito unido, quase nenhum grupo é assim, por exemplo, eu participo do ooletivo Pirralha, são 70, 76 cartunistas e é um barato. Mas, além disso, já fiz muitos trabalhos.
A respeito do prêmio que você ganhou em outubro 2020, do Vladimir Herzog. Eu queria saber como foi para você receber esta homenagem ? Eu só sou o fiel depositário do prêmio. Ele esta aqui em casa fisicamente comigo, mas na verdade foi dado ao que a charge acabou provocando. Esse é um prêmio que eu ganhei junto com os colegas da Pirralha.
Você acha que seu contato com a música te ajuda a aumentar um repertório de signos? No começo [da entrevista] você trouxe esta questão que o cartunista, o chargista traz esta questão dos símbolos, dos signos. Como é que você se prepara? Como monta esse repertório? Acho que uma coisa acaba se mesclando na outra, mas basicamente a charge trabalha com a razão, ela te obriga a lidar com os símbolos, então tem uma coisa objetiva ali para fazer e a música costuma lidar, do ponto de vista mais cru, com as emoções, aquela música que te põe lágrimas nos olhos. Eu acho que são dois setores diferentes, eu sou mais interprete do que compositor, eu canto e toco. Meu trio ou duo, a gente canta a letra de outros. Entendo que toda arte é revolucionária até quando não quer ser. A minha arte engajada é o cartoon.