Refúgio culinário

por
Eva Vila Pacheco
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05/11/2019 - 12h

Desde o século XIX, a imigração tornou-se um processo chave para a construção do território e da identidade nacionais. Em um primeiro momento incentivada pelo governo e, a partir de meados do século XX, realizada de forma espontânea, a entrada de estrangeiros no Brasil moldou a composição das grandes capitais, transformando cidades como São Paulo em verdadeiros centros cosmopolitas.

Hoje, fala-se em “fluxos migratórios”, numa tentativa de organizar os deslocamentos que se dão ao redor do globo terrestre. No caso do Brasil, estes movimentos vêm, especialmente, de continentes como África e Ásia (Oriente Médio). As razões são diversas: conflitos armados, escassez de recursos e até perseguição política.

Marcelo Haydu, diretor executivo do ADUS — Instituto para Reintegração de Refugiados, explica: “A lógica da migração forçada é buscar os países mais próximos. No entanto, com as fronteiras europeias e norte-americanas cada vez mais restritas, os emigrados passaram a enxergar no Brasil uma alternativa”.

CONGOLINÁRIA

Em uma colorida placa, lê-se: “Vegan Food — Descobrindo os Sabores do Congo”. Mais adiante, uma seta aponta a escada que leva ao segundo piso da Fatiado Discos, sebo de música e bar ao ar livre, localizado na Av. Alfonso Bovero (próximo às estações Sumaré e Vila Madalena do Metrô).

A escada dá num pequeno salão, igualmente alegre. Na parede, grafites de animais do continente africano. Contam-se nove mesas. Nelas, casais e grupos de amigos saboreiam — a maioria, pela primeira vez — a comida Congolesa. E suas expressões não disfarçam: ela é deliciosa.

Inaugurado em 2016, o Congolinária foi idealizado pelo Chef Pitchou Luambo. Advogado de formação, Pitchou emigrou para o Brasil em 2009, em função da guerra civil que tomou conta de seu país na década de 1990. Desde então, tem se tornado referência em ações afirmativas para refugiados, combatendo o preconceito e a discriminação.

O cardápio

No almoço, por R$ 30, o cliente opta por um prato principal, um suco e uma sobremesa, preparados pelo sous-chef. Para cada dia da semana, há um especial: refeições que buscam trazer o sabor do Congo para a mesa do brasileiro, com releituras e ingredientes encontrados aqui.

Mbuzi (fofu [polenta africana] de farinha de milho, couve na mwamba [pasta de amendoim] e banana da terra frita) 
​​​​​​Foto: Divulgação

O restaurante não utiliza nenhum produto de origem animal. Os pratos, inclusive, os homenageiam. Bata (servido apenas aos domingos), Kuku (às quintas-feiras) e Simba (todos os dias), querem dizer, respectivamente, pato, galinha e leão, em Suaíli, língua da família Banto.

Além disso, o local preza pelos ingredientes orgânicos, em vez dos industrializados. No sábado, a “Feijoada do Chef” (feijão preto refogado no azeite de dendê com legumes, mix de cogumelos, arroz branco cozido no suco de gengibre, farofa de banana da terra e couve na mwamba) é a mais pedida pelos clientes.

Recepção

Foto: Eva Pacheco

Os universitários Pedro, Pedro Bairrão, Gabriel e Guilherme são moradores do bairro e nunca haviam ido ao Congolinária. A ideia partiu de Guilherme, estudante de engenharia elétrica da USP, que conheceu o restaurante pelo Facebook, por meio do check in de seus amigos.

Eles confessam que não tinham muitas expectativas com relação a culinária do local, mas que foram surpreendidos positivamente pelos pratos degustados: a “Feijoada do Chef” e o Okapi (massa de mandioca fermentada, servida com feijão branco refogado no alho e azeite de dendê e funghi). “Achei a mandioca interessante, pois é preparada de um jeito com o qual não estamos acostumados. Geralmente, comemos frita, ou como um purê”, comenta Guilherme.

Gabriel, que estuda Publicidade & Propaganda, acrescenta: “A comida é um jeito bacana de entrar em contato com a cultura de um país. É legal ver que há oportunidades para pessoas que vêm de fora, e eu me sinto muito feliz em fazer parte disso”.

Já Gabriela e José, estagiários de moda e de planejamento, respectivamente, escolheram o Congolinária para comemorar o seu aniversário de quatro anos de namoro. Buscando por algo “diferente”, o casal provou e aprovou o Ngombe (nhoque de banana da terra com molho de tomates frescos e shimeji). “Eu gostei da mistura do doce com o salgado. Com certeza recomendaria para outros casais”, diz José.

Jantar dos Refugiados

Todas as terças-feiras, a partir das 19h, a área externa da Fatiado Discos recebe Gladis Villalobos, boliviana especialista na preparação de quitutes árabes, como o Saj (massa típica fininha, com diversas opções de recheio) e o Falafel (bolinhos de grão de bico fritos, servidos no pão folha com tomate, alface e tahine).

Saj de carne, R$ 20. Também nas versões queijo e zaatar
Foto: Divulgação

Após emigrar para o Brasil, no ano passado, Gladis foi acolhida por uma república de africanos, no bairro da Liberdade. Por meio de um conhecido, foi apresentada ao palestino Wessam Othman, com quem trabalha hoje.

“Eu fazia doces, e não conhecia nada de comida árabe. Perto do Ramadan, Wessam passou a me ensinar a cozinhar. A primeira coisa que aprendi foi o charutinho de uva. Depois veio a kafta, o frango…”, ela se recorda.

Emigrado da Síria em 2015, Wessam atuava como designer de moda e estudava Direito na capital do país, Damasco. Dois anos após o início da guerra civil, veio para São Paulo com seu primo. “Comecei fazendo esfiha em casa, para vender no Brás”, ele conta. Hoje, administra o próprio restaurante, o Falafel SP, com a ajuda da esposa Doha Qodsieh.

Burger Falafel, do Falafel SP (pão de hambúrguer, bolinhas de falafel, tomate, picles, salada de maionese, molho de romã e pasta de alho), R$ 35
Foto: Divulgação

Refúgio & empreendedorismo

Ainda de acordo com Haydu, grande parte dos emigrados possuem um viés empreendedor. “São pessoas que, na primeira oportunidade que tiveram de abrir o seu próprio negócio, o fizeram. Enxergo isso como uma forma de sentir-se valorizado”, aponta.

É o caso, também, de Muna Darweesh, refugiada síria que hoje trabalha com catering (serviço de buffet a domicílio). Em sua casa, no Cambuci, ela prepara grandes banquetes árabes, que serão servidos em festas e confraternizações. “Na Síria, esse não era o meu trabalho. Mas lá temos muitas festas e, como toda mulher, eu aprendi a cozinhar” diz Muna, que antes dava aulas de inglês no ensino básico.

A chef Muna Darweesh, ao lado de uma de suas mesas, cuidadosamente montadas
Foto: Divulgação

É por meio das redes sociais — mas também do “boca a boca” — que Darweesh divulga o seu negócio. Em grupos de Facebook e em sua fanpage, é possível conhecer os pratos que prepara e fazer a sua encomenda. “O meu trabalho é o meu cartão de visita”, orgulha-se, enquanto mostra as embalagens de kibes, esfihas e charutos de folha de uva que saem para a entrega.

Em bazares e encontros de empreendedoras, Muna expõe iguarias típicas de países como Síria e Líbano, a exemplo da Makdous (mini berinjela em conserva, recheada com nozes e pimentão), do chancliche de ricota (no azeite, com páprica doce) e dos doces “ninho” e de massa folhada.

Quando tiveram de emigrar, Muna e seu marido não puderam eleger o destino de sua preferência. Hoje, são felizes no Brasil. E ela faz questão de dizer: “A cozinha não é apenas uma forma de mostrar a minha cultura; é um espelho do meu amor pelo país que me acolheu”.

 

Serviço:

Congolinária

Av. Prof. Alfonso Bovero, 382

Telefone: (11) 2615–8184

Facebook: /congolinaria

 

Fatiado Discos e Cervejas Especiais

Av. Prof. Alfonso Bovero, 382

Telefone: (11) 2769–0083

Facebook: /fatiadodiscos

 

Falafel SP

R. Safira, 293

Telefone: (11) 97795–4915

Facebook: /FalafelSp

 

Chef Muna Darweesh

Sob encomenda

Telefone: (11) 95437–0682

Facebook: /munacozinhaarabe

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