Redes sociais e a ciência favorecem a automedicação no Brasil

Má interpretação científica e tecnologia impulsionam um hábito arriscado que já atinge milhões de brasileiros.
por
Júlia Polito
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16/11/2025 - 12h

Por Júlia Polito

 

Na zona norte de São Paulo, precisamente no bairro do Limão, Maria Adelina, de 74 anos, convive com uma prática que se tornou comum entre muitos brasileiros: a automedicação. Há cerca de dez anos, um médico prescreveu a ela um remédio que, na época, funcionou bem para controlar suas dores na perna. Desde então, Adelina manteve o hábito de recorrer à mesma medicação, mesmo sem acompanhamento regular de um especialista, acreditando que o tratamento indicado no passado ainda resolveria seus problemas de saúde atuais.

Hoje não procura mais clínicas médicas por um motivo: o neto recém-formado em medicina. Adelina passou a pedir a ele receitas para continuar comprando o medicamento nas farmácias que conhece de longa data no bairro, sobretudo as pessoas que trabalham nelas. Considerou adotar esse hábito após algumas experiências negativas com seu plano de saúde. Infelizmente nem todas as pessoas possuem a sorte de ter um médico disponível na família. Caso ele não tivesse se formado, Maria continuaria tomando remédios sem necessidade. Esse ciclo, no entanto, chama atenção para os riscos de manter um tratamento sem avaliação médica atualizada, já que o organismo e as condições clínicas podem mudar com o tempo. E tempo é demasiadamente importante para diagnosticar e oferecer tratamento adequado.

Essa é uma das preocupações de Lucas Verdasca, recém-formado em Medicina. Ele conta que tem sido uma experiência especial poder cuidar da avó e orientá-la de forma correta sobre o uso de medicamentos. Para ele, além de um dever profissional, é também um gesto de carinho.

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                            (Imagem/Reprodução: arquivo pessoal)

 

 

A atenção de Lucas reflete um desafio que vai além das relações familiares. Em um cenário cada vez mais digital, a mesma tecnologia que facilita o acesso à informação e impulsiona campanhas de conscientização como o Outubro Rosa e o Setembro Roxo é também a que pode levar um paciente a interpretar mal os sintomas e buscar soluções por conta própria. Essa é a dualidade da era da informação na saúde.

Diante desse cenário, o médico destaca a diferença crucial entre ter acesso à informação e possuir conhecimento de fato. Ele observa que a facilidade em encontrar conteúdos sobre saúde na internet não significa que o público saiba aplicá-los corretamente. Para ele, informação e formação são conceitos distintos: o acesso não garante domínio sobre a prática nem compreensão sobre como cada caso se aplica a um indivíduo. A Internet não é capaz de construir um raciocínio clínico, o que faz com que muitas pessoas se apeguem aos piores cenários e ignorem que as condutas médicas são sempre individualizadas, jamais universais.

O risco, portanto, é duplo: além do sofrimento psicológico de se autodiagnosticar com uma doença grave, há o perigo físico do uso incorreto de medicamentos. Verdasca lembra que até mesmo anti-inflamatórios, vendidos sem receita e amplamente utilizados, são medicações perigosas e que podem trazer diversos danos à saúde, como lesões nos rins e no estômago, provando que nenhum tratamento deveria começar com um clique, e sim com uma consulta.

A automedicação ganhou novas dimensões na era digital. Uma pesquisa recente do Instituto de Ciência, Tecnologia e Qualidade (ICTQ) mostra que 86% da população recorre a remédios sem orientação médica, principalmente para dores de cabeça, gripes e febre. O fenômeno, hoje é intensificado por dois fatores: a influência das redes sociais, onde proliferam dicas de saúde sem comprovação científica, e a má interpretação de estudos acadêmicos ou científicos, que chegam ao público de forma simplificada e fora de contexto. A ausência de uma receita não significa ausência de perigo. Mesmo usando medicações que não precisam de receituário médico, como os anti-inflamatórios, ainda sim são medicações perigosas que podem trazer diversos danos à saúde da pessoa. Segundo o Sistema Nacional de Informações Tóxico-Farmacológicas (Sinitox/Fiocruz), mais de 30 mil internações anuais estão relacionadas a intoxicações por medicamentos. E com a evolução da tecnologia, esse problema tem se tornado cada vez pior.

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                               (Imagem/Reprodução: Divina Providência)                                                                                                                                                    

Segundo Lucas, mesmo medicamentos aparentemente simples, como os anti-inflamatórios, podem causar danos sérios aos rins e ao estômago quando usados de forma inadequada. Entre os principais sinais de risco estão dor abdominal intensa, especialmente na parte superior do abdômen, diminuição do volume de urina e a presença de sangramentos, que indicam a necessidade imediata de procurar orientação médica. Além disso, existem os riscos das reações adversas, que são imprevisíveis e podem ser fatais. Cada medicação tem suas particularidades, assim como cada indivíduo apresenta condições de saúde e comorbidades próprias, o que faz com que um mesmo medicamento seja adequado para uma pessoa, mas inadequado para outra, sem contar os quadros de alergias que podem se tornar potencialmente graves.

A presença digital transformou as redes sociais em grandes “consultórios informais”, aplicativos como TikTok, Instagram e YouTube concentram milhares de vídeos e postagens que ensinam, de forma simplificada, a lidar com sintomas do dia a dia. O problema é que muitas dessas informações não possuem comprovação científica. Uma investigação do The Guardian revelou que mais da metade dos 100 vídeos mais populares com a hashtag #mentalhealthtips no TikTok contém dados incorretos ou enganosos, que são capazes de induzir a auto diagnósticos equivocados e ao uso inadequado de remédios. 

Esse tipo de conteúdo atinge um público massivo. Praticamente todo usuário de redes sociais já se deparou com algum vídeo ou postagem sugerindo medicamentos ou “truques de saúde”. As famosas trends, desafios ou modas virais funcionam como multiplicadores dessa desinformação, espalhando recomendações sem qualquer base técnica. O papel dos influenciadores digitais se torna perigoso para o público, ao compartilhar experiências pessoais como se fossem orientações universais, eles criam um efeito de validação social. Se alguém em quem o seguidor confia recomenda, a tendência é acreditar que o produto ou técnica funcione. Essa relação de confiança, típica do ambiente digital, aumenta o risco de que milhões de pessoas adotem práticas inadequadas sem questionar a segurança delas.

Não apenas a desinformação contribui para a automedicação. O uso inadequado da ciência também alimenta o problema. Pesquisas científicas complexas, divulgadas em linguagem simplificada, acabam sendo interpretadas de maneira incorreta pelo público, criando uma rede de informações falsas. Um exemplo claro desse fenômeno está no uso de ferramentas de inteligência artificial. Um estudo publicado na Royal Society Open Science mostrou que sistemas como ChatGPT, LLaMA e DeepSeek tendem a generalizar resultados de pesquisas científicas, omitindo detalhes cruciais como dosagem ou riscos. Isso favorece interpretações superficiais e potencialmente perigosas, quando aplicadas diretamente ao consumo de medicamentos.

Essa perigosa generalização é reforçada na prática clínica, como detalha o médico Lucas Verdasca, ao exemplificar o porquê a IA não pode e não deve substituir uma consulta. Pelo simples fato de que ela não foi feita para ocupar o conhecimento e o saber técnico, foi feita para facilitar o que já existe e é humano. Ele ressalta que, embora a tecnologia seja uma aliada dos próprios médicos, ela não possui os elementos essenciais de um diagnóstico, pois existe todo um raciocínio montado não com base em um texto, mas sim em uma avaliação física, exames complementares, análise estruturada, que muitas vezes a inteligência artificial não tem acesso. A tecnologia funciona como facilitadora do trabalho médico,  não um contato direto entre o paciente e a IA.

A automedicação no Brasil aumentou com a chegada da era digital e, embora as redes ajudem a disseminar campanhas de saúde, elas também prejudicam. O quadro é preocupante não apenas pela frequência, mas pelo impacto na saúde pública e no aumento de internações evitáveis. A busca por soluções rápidas e a confiança em fontes não verificadas contribuem para um cenário em que milhões de brasileiros colocam a própria saúde em risco.