Por Lorena Basilia
As chaves já não soam mais como antes no edifício onde Dona Alzira mora há mais de três décadas. No lugar do velho molho pendurado na bolsa, uma pequena câmera preta observa quem chega e quem sai do prédio no centro de São Paulo. O portão só abre quando reconhece o rosto do morador. Para uns, é sinal de modernidade e segurança; para outros, como a própria Dona Alzira, é mais uma barreira digital a ser enfrentada. Ela conta que ficou parada em frente à câmera, tentando não piscar, mas o sistema não a reconheceu. Diz que sente falta do tempo em que bastava o clique da chave para entrar em casa e confessa ter medo de um dia voltar do salão com o cabelo diferente e o portão não abrir.
O síndico Ricardo vê a novidade de outra forma. Para ele, a modernização é inevitável e necessária. O sistema de reconhecimento facial, segundo explica, foi aprovado em assembleia e tem como objetivo reforçar a segurança do prédio e facilitar o dia a dia dos moradores. Ele garante que todas as medidas estão sendo tomadas para seguir as normas da Lei Geral de Proteção de Dados e que o sistema não guarda fotos, mas sim códigos criptografados das feições do rosto de cada morador. Enquanto os mais jovens se adaptam com facilidade, o condomínio tenta manter um equilíbrio, para que as formas antigas de acesso coexistam até que todos se acostumem.
A adoção de sistemas de reconhecimento facial em condomínios residenciais cresce em ritmo acelerado no Brasil. O que antes era comum em bancos e aeroportos agora faz parte da rotina doméstica - mas o avanço traz também novas preocupações - o conselheiro Vitor Moraes Andrade, da Autoridade Nacional de Proteção de Dados, explica que a imagem facial é um dos dados mais sensíveis que existem, porque carrega características únicas da identidade de uma pessoa. Em caso de vazamento, o impacto é muito maior do que o de dados comuns. Ele afirma que, quando ocorre um incidente, o condomínio, na posição de controlador dos dados, deve agir imediatamente, identificar o problema, comunicar os afetados, conter o vazamento e, se necessário, notificar a ANPD. Também é preciso entender o tipo de dado exposto, quantas pessoas foram afetadas e se há indícios de crime.
Para a especialista em Direito Digital Lygia Molina, é essencial que os condomínios compreendam a responsabilidade que assumem ao administrar dados biométricos. Ela observa que muitos ainda não têm clareza sobre o fluxo dessas informações, onde ficam armazenadas e quem tem acesso a elas. Em alguns casos, há até transferência internacional de dados, quando empresas contratadas utilizam servidores em outros países sem informar os moradores. A advogada ressalta que a administradora deve garantir transparência, manter canais de comunicação eficientes e permitir que os moradores saibam exatamente quais dados estão sendo coletados e como são usados.
Sobre a possibilidade de recusar o uso da biometria, Lygia lembra que condomínios são ambientes privados e regidos por decisões coletivas. Se o uso da tecnologia foi aprovado em assembleia, passa a ser uma regra de convivência. O morador tem direito a ser informado e a acessar seus dados, mas não pode simplesmente se recusar a participar, a menos que opte por não integrar aquele grupo. Vitor Moraes acrescenta que o morador tem o direito de solicitar correções, exclusões e esclarecimentos sobre o tratamento dos seus dados, sempre com base na transparência e no controle do titular sobre suas próprias informações.
No prédio de Dona Alzira, o síndico Ricardo tenta equilibrar o avanço tecnológico com o respeito às gerações mais antigas. Ele afirma que o importante é garantir que ninguém se sinta excluído nesse processo. Dona Alzira, por sua vez, observa as câmeras com um misto de desconfiança e curiosidade. No fim das contas, entre o passado analógico e o presente digital, o prédio vai aprendendo a conviver com o novo. E no reflexo da câmera que abre o portão, a fronteira entre segurança e privacidade continua sendo ajustada — um clique de cada vez.