Travestis e periféricas, o trio formado por Katy da Voz, Palladino Proibida e Degoncé Rabetão emergiu do Grajaú, na zona sul de São Paulo, para ocupar um espaço historicamente negado a corpos como os delas. Com letras afiadas, performances teatrais e uma sonoridade que atravessa o funk, o punk e a música eletrônica, elas transformam resistência em espetáculo e desconforto em discurso político.
O trio começou a chamar atenção por volta de 2019, quando suas primeiras apresentações nas noites alternativas paulistanas passaram a circular pelas redes. O impacto foi imediato e revelador. Entre o som pesado e a presença cênica, havia algo mais profundo, quase visceral, uma provocação clara ao modo como o público, a indústria e até parte da comunidade LGBTQIA+ lidam com a travestilidade. Katy costuma dizer que gosta de gerar desconforto e que, se alguém se incomoda ao vê-la no palco de calcinha, o problema nunca está nela. Essa afirmação acabou se tornando um mantra entre fãs e resume bem a postura artística e política do grupo.
O desconforto é, na verdade, uma ferramenta. Em uma cena musical ainda marcada por estereótipos, Katy e as Abusadas transformam o palco em território de disputa simbólica. A arte é o meio e também o campo de batalha. Elas não só cantam sobre liberdade; elas a encarnam em cada apresentação, em cada figurino e em cada verso. Com viés político, o simples fato de estarem ali, vivas, cantando e ocupando espaços que nunca foram pensados para elas, já é um manifesto.
O álbum A Visita, lançado recentemente em 2025, amplia essa postura combativa. Inspirado tanto no terror psicológico dos filmes de M. Night Shyamalan quanto na ironia inteligente das composições de Claudia Wonder, ícone travesti dos anos 2000, o disco apresenta uma estética sombria, eletrônica e profundamente provocante. A metáfora da visita demoníaca que permeia o projeto representa a chegada delas ao imaginário popular, algo que muitas vezes provoca fascínio e incômodo ao mesmo tempo. A fusão entre horror e música eletrônica não é mero artifício estético. É uma forma de dramatizar o olhar social sobre o corpo travesti, quase sempre visto como ameaça, fetiche ou aberração. Em A Visita, o horror é apropriado como instrumento político. O medo se torna matéria artística, e a monstruosidade, tantas vezes projetada sobre elas, se converte em poder.

Fotos: Divulgação/Spotify
O som do trio mistura a força do funk das favelas, com sua energia corporal e política, ao espírito anárquico do punk e às camadas densas da música eletrônica. Essa convergência dá origem ao que elas chamam de som de confronto, uma identidade que se traduz em ritmos intensos, guitarras distorcidas, sintetizadores e letras que abordam desejo, raiva, ironia, memória e redenção. Essa estética híbrida reflete as próprias experiências das integrantes, marcadas por tensões, adaptações e reinvenções constantes.
Mas a potência das Abusadas não está apenas na sonoridade. Está na forma como elas ocupam espaços que frequentemente lhes foram negados. Travestis da periferia, elas enfrentam o duplo preconceito de gênero e classe em um país que segue invisibilizando suas existências. Cada show é uma vitória coletiva. A participação em festivais como o Halloween da Pabllo Vittar representa muito mais do que uma conquista profissional; simboliza a presença de corpos expulsos da história agora em posição de destaque, produzindo cultura e movimentando cenas inteiras.
Mesmo com reconhecimento crescente e mais de duzentos mil ouvintes mensais no Spotify, o trio sabe que o caminho é árduo. A homenagem a Claudia Wonder não é apenas estética ou musical. É política. Wonder, nos anos 1980, usava o palco como instrumento de subversão e, de muitas formas, abriu caminhos para artistas travestis que viriam depois. Katy frequentemente menciona a imagem de Wonder se apresentando em uma banheira de sangue no Madame Satã, não como espetáculo pelo espetáculo, mas como gesto de reivindicar o direito de existir em sua própria linguagem, sem suavizar nada.
Em meio a provocações, batidas e teatralidade sombria, o trio se consolida como um dos nomes mais importantes da cena underground contemporânea. Há em seus shows uma combinação de performance, ritual e denúncia. Subir ao palco é também um ato de sobrevivência, uma afirmação de que elas não só existem, mas exigem ser vistas.
O que move Katy da Voz e as Abusadas é o desejo de ocupar, de transformar a dor em barulho e o medo em arte. A cada novo projeto, elas reafirmam que ser travesti e periférica não é obstáculo. É declaração de guerra ao silêncio. E se há algo que a trajetória delas comprova, é que a revolução pode ter batida de funk, grito punk, lente de terror e salto alto.