Qual o endereço da violência policial?

No Norte e Nordeste estão as polícias mais letais do país e o alvo é o corpo negro, jovem e periférico
por
Thainá Brito
Ana Julia Mira
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24/09/2025 - 12h

15 de maio de 2025, quase 18h. Neste dia, Vitor foi até a balsa para buscar turistas e levá-los de volta à hospedagem, em Caraíva. Prática comum do seu trabalho como guia no vilarejo, localizado no Sul da Bahia e famoso por suas belas praias. Ainda próximo ao local, o guia percebeu uma operação policial acontecendo e entrou em um comércio com os visitantes em busca de abrigo. A ação buscava cumprir um mandado de prisão para um traficante chamado Alongado.

Ao sair do comércio, minutos depois, para conferir se a situação já havia acabado, foi algemado e levado para fora da vila. Seu corpo, jovem e negro, só apareceu nove horas depois, em Porto Seguro, baleado e com sinais de tortura.

O que aconteceu com Vitor Cerqueira não é um incidente isolado, mas a face visível de um padrão frequente seguido por todo o país, e que encontra nas regiões Norte e Nordeste alguns de seus índices mais brutais. Segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2025, os estados do Amapá, Bahia e Pará possuem as polícias mais letais do Brasil, com taxas de letalidade policial de 17,1, 10,5 e 7,0 mortes por 100 mil habitantes, respectivamente. O perfil das vítimas é quase sempre o mesmo:  91% homens e 82% negros. Para especialistas, números tão persistentes não são acidentes, mas consequência direta de políticas públicas de segurança que tem como alicerce o racismo estrutural. 

"Trata-se de um fenômeno estrutural, profundamente enraizado na formação social brasileira e inseparável da herança escravista que moldou nossas instituições. O racismo não é um resíduo do passado, mas uma dimensão constitutiva da nossa sociabilidade, articulada ao desenvolvimento do capitalismo” diz Francisco Flavio Eufrazio, Mestre em Serviço Social pela Universidade Estadual do Rio Grande do Norte (UERN).

Segundo pesquisadores, a polícia brasileira é calcada, desde a sua fundação, em políticas racistas. O modelo foi criado no Sudeste do país no século XIX, período pós-abolição e Proclamação da República, quando as elites econômicas utilizaram a força estatal como instrumento de controle da população negra e operária. Durante a ditadura militar, a militarização foi intensificada nacionalmente, incorporando a lógica de guerra ao inimigo interno, o que permitiu a ação predominante das PMs nas ruas até os dias de hoje. 

Essa estrutura nunca foi atualizada, a lógica do inimigo interno permanece intacta, com o alvo inalterado: a população negra e periférica. O que mudou foi apenas o discurso, termos novos vestem intenções antigas, a figura do suspeito em potencial ainda é utilizada como justificativa para a violência contra corpos racializados.

“A militarização contribui para a manutenção de uma estrutura corporativa rígida e pouco transparente, que dificulta a responsabilização por abusos. É processo em que uma sociedade, nação ou região passa a ampliar a presença e a influência das forças armadas em diferentes dimensões da vida civil. Esse processo amplia a lógica de guerra interna e faz com que determinadas populações, sobretudo a juventude negra periférica, sejam tratadas como inimigas a serem eliminadas”, explica Francisco.

            O Anuário ainda indica que em algumas cidades dessas regiões, a violência policial mata mais pessoas do que o crime. Na cidade de Itabaiana, em Sergipe, 75,6% das mortes violentas foram causadas por policiais. “As disparidades regionais e a concentração das vítimas em segmentos específicos – como jovens negros do sexo masculino – expõem os limites das políticas públicas de segurança e reforçam a urgência de ações estruturantes voltadas à prevenção, à responsabilização e à proteção de grupos historicamente vulnerabilizados”, afirma um trecho do estudo.

Guerra às drogas

A guerra às drogas, termo utilizado para o combate ao tráfico de drogas por parte do governo, é utilizada muitas vezes para justificar o aumento da violência policial. Segundo Francisco, no Norte e Nordeste, uma das razões desse aumento pode ser o fluxo migratório de grandes facções para essas regiões, gerando, consequentemente, um movimento de descentralização da violência policial: “antes concentrada em grandes metrópoles brasileiras e agora existente em territórios, regiões e locais diversos. Por isso, conjecturo que esse movimento migratório é algo relevante e significativo para compreendermos melhor os efeitos drásticos gerados dessa diáspora interna da barbárie”, diz. 

No Brasil, a guerra às drogas tem sido utilizada, principalmente, como estratégia institucional para servir de argumento quanto à razão da morte de pessoas negras. E esse não é um movimento atual, mas algo que está enraizado na história do país. A justificativa de que alguém é suspeito de cometer algum crime parece ser suficiente quando se trata de abusos aplicados pelos órgãos que deveriam ser protetores.

Maria José Brito, advogada criminal no estado do Pará, explica um dos tipos de situação que evidencia a violência policial na região norte: “Ela é concebida através de abordagens infundadas e abusivas baseadas no preconceito racial. Vemos casos de ingressos em domicílios fora das hipóteses legais, baseadas em ‘denúncias anônimas’ que nunca são justificadas.” A advogada também afirma que frequentemente a vítima do preconceito acaba morta quando há suspeita de envolvimento com tráfico de drogas ou organizações criminosas, mesmo que essas hipóteses não sejam comprovadas.

Além disso, Maria também reforça que o contexto socioeconômico da região causa maior fragilidade a esse tipo de violência que possuí raiz no racismo. A falta de educação para a população, os poucos recursos no interior do Pará são questões que promovem os abusos por parte dos policiais sobre pessoas que não conseguem se defender, de acordo com ela.

Segundo os dados divulgados ano passado pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), no estudo “Efeito Bumerangue: o custo da proibição das drogas”, a guerra contra as drogas utilizou R$7,7 bilhões em 2023, somando os gastos da Bahia, Distrito Federal, Pará, Rio de Janeiro, Santa Catarina e São Paulo. Mais de R$ 4,5 bilhões foram para PM e Sistema Penitenciário. Mesmo com tamanho investimento estatal, a visibilidade do problema, que decorre da extrema violência policial no Norte e Nordeste, ainda é pequena nas demais regiões do país. 

A conclusão da pesquisa questiona o quanto não poderia ser feito na área da educação ou saúde nesses estados com os recursos que são aplicados em proibição de drogas. O que são verdadeiras demandas, em especial, da região norte e nordeste, como visto anteriormente.

Para Francisco, a divulgação do Anuário de Segurança Pública e de estatísticas semelhantes, mesmo que de extrema importância, não contribuem para a interpretação profunda dos fatos por apresentar os dados de forma descontextualizada. “Assim, em vez de fomentar o debate público qualificado, muitas matérias acabam apenas cumprindo uma pauta editorial, sem provocar uma reflexão séria sobre a dimensão do problema”, afirma o mestre em assistência social.

O trabalho jornalístico deve tornar acessível informações como essa, mas a imprensa, em geral, não se mostra interessada no assunto, deixando, assim, de dar visibilidade a situações de violência, como foi o caso dos amigos Gilson Jardas de Jesus Santos, de 18 anos, e Luan Henrique, de 20. Ambos foram mortos por policiais enquanto estavam aguardando a namorada de Luan em frente à casa de Gilson, em Camaçari, Bahia. A notícia foi publicada no G1 da Bahia e CNN em Salvador, mas nenhuma publicação de jornais de outros estados foi encontrada.

 

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