Desde 2017, o Brasil oferece gratuitamente a Profilaxia Pré-Exposição (PrEP), método de prevenção eficaz contra o vírus HIV, disponível no Sistema Único de Saúde para qualquer pessoa sexualmente ativa, maior de 15 anos de idade. Na prática, o remédio é amplamente divulgado entre homens, especialmente da comunidade LGBTQIA+, enquanto as mulheres ficam excluídas dessa prevenção.
Segundo dados do Ministério da Saúde publicados no Boletim Epidemiológico sobre HIV em 2023, 35% dos brasileiros que continham o vírus do HIV eram mulheres, representando cerca de um terço dos novos casos no Brasil todos os anos. Além disso, 80% dos casos de infecção por HIV entre mulheres se deu em relações heterossexuais, evidenciando uma vulnerabilidade específica.
A PrEP é uma ferramenta promissora para elas, que podem usar o remédio para prevenir a infecção pelo HIV. Tanto as solteiras quanto as que estão em um relacionamento mas não sabem do histórico de testagem para infecções sexualmente transmissíveis do parceiro ou parceira correm o risco de infecção quando fazem sexo sem camisinha.
Porém, neste ano, somente 8,8% dos usuários de PrEP foram mulheres cisgênero e 3,2% mulheres trans. A infectologista Camila Bicalho explica: “As mulheres não têm informação ou conhecimento sobre a prevenção, que pode ser utilizada por elas”.
“Por muito tempo, a utilização do preservativo como único método de evitar casos de HIV era a única saída. Hoje, a prevenção passa por várias medidas, uma delas é a PrEP. Se utilizada corretamente reduz o risco de contrair o HIV por meio de relação sexual em até 90%, e por meio de compartilhamento de drogas injetáveis em até 70%.Quando pensamos em saúde pública, o impacto da PrEP é a diminuição de novos casos de HIV”, segundo doutora Camila.
O QUE É PrEP?
A Profilaxia Pré-Exposição prevê o uso de um comprimido usado antes da relação sexual que impede que o HIV se multiplique no organismo. O comprimido combina dois medicamentos (tenofovir e entricitabina) que bloqueiam alguns “caminhos” que o vírus usa para infectar o organismo. Assim, mesmo que a pessoa entre em contato, a infecção não se instala. A utilização pode ser diária ou sob demanda (somente quando a pessoa tiver uma possível exposição de risco ao vírus).
É recomendado o uso da prevenção para pessoas que estão em um relacionamento sexual com um parceiro ou parceira que vive com HIV, não use preservativos regularmente, tem um ou mais parceiros sexuais com status de HIV desconhecido, estão envolvidos em um trabalho sexual comercial, teve uma doença sexualmente transmissível bacteriana recente ou usou drogas injetáveis nos últimos seis meses.
Mulheres cisgênero, pessoas trans ou não binárias designadas como sexo feminino ao nascer, e qualquer pessoa em uso de hormônio a base de estradiol, que queiram fazer o uso de PrEP oral diária, devem tomar o medicamento por pelo menos 7 (sete) dias para atingir níveis de proteção ideais.
A PrEP sob demanda deve ser utilizada com a tomada de 2 comprimidos de 2 a 24 horas antes da relação sexual, +1 comprimido 24 horas após a dose inicial de dois comprimidos +1 comprimido 24 horas após a segunda dose.
É possível pegar o medicamento em serviços de saúde do SUS, como UBSs, bem como em farmácias da rede privada com receita médica. Em São Paulo, pode usar o aplicativo e-saúdeSP para encontrar a PrEP ou pegar em máquinas de distribuição nas estações de metrô.
O ESTIGMA
Apesar da relevância preventiva, muitas mulheres não aderem ao medicamento ou nem sabem o que é. A doutora Camila explica que, até a revisão de 2022, a PrEP foi direcionada sobretudo a “populações vulneráveis”, o que na prática priorizou homens que fazem sexo com homens e travestis/trans. “As mulheres, até 2022, não eram consideradas como população vulnerável para uso de PrEP”, diz a médica.
Ainda assim, segundo a doutora, a histórica sub-representação das mulheres em pesquisas sobre a PrEP pode ter sido um dos fatores que contribuíram para a baixa adesão: “Algumas hipóteses foram levantadas, como, por exemplo, o fato de as mulheres cisgênero não terem sido incluídas nos primeiros estudos de avaliação da PrEP, inclusive com retratação de alguns laboratórios que se comprometeram a incluir mulheres cisgênero nas próximas avaliações.”
Ensaios clínicos como o VOICE e o Fem-PrEP mostraram resultados positivos pouco expressivos em mulheres. Isso ocorreu principalmente pelo uso inconsistente da medicação e a falta de campanhas voltadas ao público feminino. Mais do que limitar conclusões científicas, essa realidade contribuiu para alimentar a ideia equivocada de que a PrEP “não era para mulheres”, quando o que faltava era suporte à adesão e estratégias de comunicação adequadas.
Mas, ainda segundo a infectologista Camila, ainda há muitas outras possibilidades para a baixa adesão das mulheres “como o fato delas se sentirem seguras em uma relação heterossexual e abandonarem a utilização do preservativo, sem buscar outra forma de prevenir as infecções pelo HIV”. “Além disso, os serviços ginecológicos, onde as mulheres frequentam anualmente para fazer o papanicolau e também a mamografia, não discutem com essas mulheres a possibilidade da PrEP.”, acrescenta ela. Os profissionais de saúde, quando não são devidamente treinados, deixam de mencionar a opção ou o fazem de forma estigmatizante, afastando as pacientes.
Para Myrt Cruz, professora e doutora em Ciências Sociais da PUC SP, essa falta de conhecimento sobre a prevenção tem a ver com uma barreira social: “Não é uma decisão deliberada de uma mulher não acessar a sua própria saúde, aos recursos disponíveis para a sua própria saúde; mas há um julgamento moral, há um machismo estrutural que impede e dificulta que ela acesse esses recursos.”
A professora explica que “o machismo estrutural faz com que essa mulher, muitas vezes, confie cegamente nesse parceiro com quem se relaciona, sem ter uma visão crítica de que esse parceiro pode estar tendo relacionamentos sexuais com outras pessoas. Essa é uma ideia muito estigmatizada e complicada, que foi, durante décadas, dissuadida pela mídia. Então, há um desconhecimento, uma ignorância em torno do que se trata e a necessidade de desconstruir esse estigma”.
Em contextos de violência de gênero, dependência econômica ou restrição de autonomia, a capacidade de negociar o uso do preservativo é limitada, e o acesso a alternativas como a PrEP fica ainda mais comprometido. Desigualdades de renda, baixa educação em saúde sexual e reprodutiva também influenciam negativamente a busca e a permanência no uso da medicação.
Assim, barreiras sociais e culturais limitam o acesso das mulheres ao diagnóstico e tratamento precoce do HIV. A ausência de campanhas voltadas ao público feminino reforça a falta de informação, enquanto o estigma em torno do uso, frequentemente associado à promiscuidade ou a práticas sexuais consideradas de risco, acaba gerando receio e vergonha.
“Há necessidade de que as universidades, centros de pesquisa, centros comunitários se apropriem desse discurso, do conhecimento e trabalhem de um jeito que chegue até essa mulher, de forma clara, objetiva, que atinja elas”, declara Myrt.
A PrEP é uma ferramenta poderosa, mas que só cumprirá seu papel se estiver acessível a todas as pessoas que dela necessitam, especialmente aquelas que historicamente foram invisibilizadas. Incluir as mulheres é uma questão de justiça social e de saúde pública. O combate ao HIV precisa ser coletivo e livre de preconceitos. E isso começa com o reconhecimento de que a prevenção também é e deve ser para elas.