“Por que a final masculina passou na Globo e a feminina não?”

Filas enormes para entrar no estádio Paulo Machado de Carvalho
por
Geovanna Vides e Vinícius Batista
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14/11/2019 - 12h

     Primeiro de junho. Filas enormes para entrar no estádio Paulo Machado de Carvalho, em São Paulo. Torcedores barulhentos carregam bandeiras e baterias, entoando gritos de vitória. 35 mil pessoas lotam as arquibancadas. É assim que Marcela, a zagueira do Palmeirinha de Paraisópolis, relembra a final da Taça das Favelas de 2019, primeira edição paulista do maior campeonato entre favelas. “Foi emocionante saber que conseguimos levar tanta gente para nos ver disputar a final, ninguém acreditava”. O time de Marcela não levou a taça, mas conquistou o que as jogadoras mais queriam: respeito. 

     À beira do campo de futebol da comunidade de Paraisópolis, Marcela me conta sobre sua paixão pelo esporte. Começou a jogar bola com 13 anos, influenciada por sua irmã e pelo seu pai. Hoje, com 17, sonha em se tornar uma jogadora profissional. Quando pergunto quem a inspira, a zagueira tem a resposta na ponta da língua: a francesa Wendie Renard. “Foi muito criticada por ser uma garota e saber jogar bola, e hoje é uma das melhores defensoras do mundo”. A história soa familiar ao histórico de todas as grandes atletas do futebol feminino. Na verdade, é o mesmo. 

     Pergunto à Marcela se ela acompanhou a Copa do Mundo Feminina de 2019. Ela, com entusiasmo, me responde que sim. Dessa vez conseguiu acompanhar, pois passou na TV aberta- 2019 foi o primeiro ano em que quatro canais nacionais possuíram os direitos de transmitir os jogos ao vivo. Viu Marta superar Klose, ganhando o posto de maior artilheira do torneio com 17 gols, 1 a mais que o jogador alemão.  Viu Formiga atingir o posto de única pessoa do mundo a ter participado, como atleta, de sete Copas do Mundo. Vibrou com a seleção. Mas também sofreu. Sofreu com a eliminação do time nas oitavas de final pela França. Sofreu com os protestos por igualdade levantados pelas jogadoras no torneio. Marcela, Marta, Cristiane e Wendie têm isso em comum: continuam sofrendo diariamente com a desigualdade no esporte.

 

foto marta
Marta protesta por igualdade de gênero nos patrocínios (Foto: Pascal Guyot / AFP).

A Copa representou um avanço considerável na luta das mulheres por igualdade salarial. A Fifa distribuiu o total de 30 milhões de dólares de premiação para as seleções participantes, pouco mais que o dobro do valor oferecido na Copa de 2015. O prêmio do campeão também aumentou, de dois milhões de dólares para quatro milhões em 2019. A mudança parece significativa, mas ainda é pequena quando comparada à versão masculina do torneio. 

No ano de 2018, a seleção francesa levou para casa 38 milhões de dólares, mais do que toda a recompensa oferecida às mulheres. O Mundial masculino ofertou a quantia de 400 milhões de dólares para as seleções participantes. E a diferença ainda tende a crescer. 

Apesar do valor do torneio feminino ter sido dobrado em 2019, a projeção de aumento para os homens segue maior. A Copa de 2022, no Catar, terá adição de 440 milhões de dólares. São 40 milhões a mais do que 2018, quantia que por si só já supera as bonificações pagas na Copa do Mundo feminina de 2019.

     A situação piora quando diz respeito ao salário dos atletas. Para efeito de comparação, a melhor jogadora do mundo em 2018 e mais bem paga, Ada Hegerberg, ganha 208 vezes menos que o jogador mais bem pago do mundo, o argentino Lionel Messi. Em rendimentos anuais, a jogadora Marta, eleita seis vezes melhor do mundo, obteve 267 vezes menos rendimentos que Neymar no ano- que nunca recebeu o troféu. Isso quer dizer que a jogadora não chega nem a obter 1% do rendimento anual do jogador. 

     Marcela não ganha remuneração por parte do time, mas isso não a faz se sentir distante da causa. Sua realidade também é cheia de distinções de tratamento entre o time feminino e masculino na comunidade.  “Os meninos têm tudo. Comparado à gente, (eles) têm tudo. Tem equipamentos, bolas, mais visibilidade. Eles podem perder e estão tendo reconhecimento do mesmo jeito. Participam de muitas peneiras. As meninas têm que lutar muito para conseguir uma, e não é para todas”. O discurso da zagueira carrega uma certa raiva, de alguém que já se cansou de aceitar a desigualdade no futebol.

    Outra jogadora se aproxima e acena para Marcela. É Marluce, centroavante e artilheira do time na competição de 2019. O ambiente à nossa volta está cheio. Grupos de meninos se acumulam nas arquibancadas para assistir ao treino da categoria sub-15 masculina. Ergo minha voz para perguntar às atletas se o treinamento delas é sempre assim, lotado. Elas se entreolham e 
dão uma risadinha, balançando a cabeça negativamente. “Antes de chegarmos à final da Taça das Favelas, os moradores ficavam ao redor do campo zombando. Diziam para desistirmos logo, que estávamos perdendo tempo. Quando enchemos o Pacaembu com mais de 30 mil pessoas, começaram a nos respeitar”, diz Marcela. “Alguns olhares dizem tudo. O preconceito ainda não acabou” completa Marluce. Se o machismo afeta a elite esportiva, como imaginar que a situação seria diferente na base?


     Marluce me diz que o preconceito muitas vezes vem do próprio lar. Apaixonada pelo esporte desde os 8 anos, a jogadora encontrou dentro de casa um empecilho: sua mãe. “Ela dizia que era coisa de moleque, não me deixava jogar. Muitas vezes cabulei aula para bater bola com os meninos”. Chamada na escola de “maria-macho”, Marluce nunca desistiu de seu sonho. Batalhou muito, quando, aos 14 anos recebeu uma proposta para jogar na categoria de base do São Paulo. Sua mãe não assinou a autorização. Aos 15 anos, recebeu uma oferta da Juventus, mas a história se repetiu. Caiu em depressão, mas o esporte a motivou a continuar. Hoje, aos 30, garante que já está velha demais para ingressar no futebol profissional, mas resolveu usar sua história como combustível para mudar o mundo à sua volta. 

     Neste ano, ela fundou o projeto social “100 noção”, onde comanda um time de futebol composto atualmente por 40 meninas e mulheres que encaram a mesma situação que a centroavante enfrentou. Marluce as incentiva a continuar batalhando, correndo atrás de seus sonhos. Os treinos são realizados no CEU Paraisópolis, onde ela ocupa uma posição multitarefa. “Sou tudo, treinadora, psicóloga, amiga... assim consigo ter a confiança delas. Assim vou resgatando sonhos e vidas “

     Esse também é o objetivo de Mônica Melo da Silva, treinadora do Palmeirinha de Paraisópolis. Em uma ligação, a professora de alfabetização  me contou o que a leva a arranjar uma brecha em sua rotina para treinar as “suas filhas”, como se refere às jogadoras. O que a motivou a se dividir entre a escola e o time, além da paixão pelo futebol que envolve toda a família, foi a luta pela igualdade de gênero dentro do esporte. “Hoje, quando minhas jogadoras fazem um golaço ou uma jogada fantástica eu escuto ‘nossa! Parece homem jogando’ e eu retruco ‘Não, não! É mulher jogando.’”

O preconceito se estende para fora do campo. Mônica me conta que, durante a final da Taça das Favelas deste ano, se deparou com uma situação desagradável. Quando foi entrar no gramado, o segurança a barrou. “Ele me perguntava onde estava o técnico. Eu disse que eu era a técnica. Ele continuou perguntando ‘tá, mas e o técnico?’”. 

     Marcela e Marluce conversam entre si, enquanto observo quatro comerciais pendurados nas grades da arena. “São os novos patrocinadores que conseguimos ao chegar na final da competição” explica Marcela. Pequenos comércios locais decidiram incentivar as meninas a perseguir o sonho de se tornarem jogadoras profissionais. Lembro do protesto da camisa 10 da seleção brasileira durante o jogo contra a Austrália, que ficou conhecido nas redes como “Manifesto Marta”. A cena da jogadora apontando para sua chuteira preta, sem a estampa de uma marca esportiva, com duas faixas azul e rosa simbolizando o movimento da ONU Mulheres Go Equal por equidade salarial, ficou na memória de muitos telespectadores. A revolta de Marta é simples: a oferta dos patrocinadores não é equivalente ao que ela representa para o futebol mundial. A jogadora não aceita ganhar um valor 60 vezes menor do que o oferecido aos profissionais do sexo oposto.

    A explicação das empresas é pautada na lógica investimento x recompensa. Como pagar um valor equivalente às jogadoras femininas se o retorno financeiro quando comparado ao futebol masculino é consideravelmente menor? A professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e especialista em gênero, esporte e futebol feminino, Silvana Goellner afirmou em entrevista ao jornal Brasil de Fato, que a Copa do Mundo de 2019 serviu para abalar essa convicção. “O aumento da audiência da TV aberta durante a exibição dos jogos femininos está quebrando a ideia de que o público não se interessa em ver futebol feminino”. Os números confirmam.  Segundo a Fifa, o Brasil registrou a maior audiência do mundo para a final da Copa feminina. Quase 20 milhões de espectadores assistiram a decisão entre Estados Unidos e Holanda pela Rede Globo ou em seu canal de assinatura SporTV. As marcas começaram a reagir aos dados. Pela primeira vez na história, vemos jogadoras fazendo propaganda para Guaraná, O Boticário, Itaú. 

    A doutora acredita que na relação público/consumo, o futebol praticado por mulheres precisa de investimento para aí sim gerar retorno. “O retorno financeiro do canal aberto, dos patrocinadores, não vem de imediato porque ainda não temos a cultura da modalidade estabelecida no país, seria um investimento a longo prazo”. Silvana relembra que o futebol feminino só voltou à legalidade há 40 anos, retardando assim o desenvolvimento do esporte. “É interessante pensar que a Marta se produziu fora do país, na Suécia, nos Estados Unidos. Não se constituiu aqui essa grande atleta que ela é, mas em países onde tinham campeonatos, salários, condições para se tornar uma atleta. “Quantas outras Martas podem estar escondidas no nosso país sem a possibilidade de se desenvolver por falta de estrutura da modalidade, e não pela falta de talento?”

    Talento é o que não falta para a capitã da seleção estadunidense, Megan Rapinoe. Eleita a melhor jogadora do mundo em 2019 pela Fifa, a atacante mostrou que também tem aptidão com as palavras, e premiou os telespectadores com um grande discurso. “Vocês que começaram a assistir agora estão um pouco atrasados para a festa, mas vou perdoá-los. Estamos apenas começando”. 

    Me despeço de Marcela e Marluce com uma certeza: as meninas do Palmeirinha Paraisópolis estão apenas começando. 

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