Em seu primeiro ano no Congresso Nacional e com mais de 64 mil votos, Erika Hilton (PSOL) foi intitulada a segunda melhor deputada do Brasil pelo prêmio Congresso em Foco, realizado em setembro deste ano. A parlamentar é a primeira mulher trans e negra a ocupar uma cadeira na Câmara dos Deputados.
Erika, aos 30 anos e na política há 6, possui suas prioridades bem definidas enquanto ativista dos Direitos Humanos: o combate à fome, defesa do SUS (Sistema Único de Saúde) e a valorização das iniciativas culturais jovens e periféricas, assim como a luta pela equidade para a população negra, combate à discriminação e em prol de direitos da comunidade LGBTQIA +.
Primeira travesti preta eleita deputada
Nascida em Franco da Rocha e criada na periferia de Francisco Morato, região metropolitana de São Paulo, a luta de Erika começou muito antes de sua atuação na Câmara dos Deputados. Assim como muitas outras pessoas LGBTQIA+ no Brasil, aos 14 anos, devido à sua identidade de gênero e à chegada do fundamentalismo religioso dentro do seu núcleo familiar, foi expulsa de casa e precisou recorrer à prostituição como um meio de sobrevivência.
Em uma entrevista à TV Brasil, a deputada contou como foi vivenciar esse processo. “Diferente da maioria das pessoas eu nunca sofri hostilidade na minha infância, nunca tive o meu gênero reprimido, fui criada em um lar por mulheres e essas mulheres me deram a possibilidade e a liberdade de ser quem eu sou", comentou. “O fundamentalismo mudou um pouco essa lógica de uma forma muito violenta e abrupta, eu não esperava por isso.”
“Essa expulsão de casa vai me levar à prostituição muito jovem, como ocorre com a maioria das mulheres transexuais e travestis no Brasil ainda hoje. É importante que as pessoas saibam que 90% das mulheres transexuais e travestis vivem compulsoriamente da prostituição porque são expulsas de casa e não encontram espaço no mercado de trabalho,” disse.
Aos 19 anos, após conseguir se reconectar com a família, Erika concluiu o ensino médio por meio do Ensino de Jovens e Adultos (EJA), e cursou pedagogia e gerontologia na Universidade Federal de São Carlos, interior de São Paulo. Lá, participou do movimento estudantil e fundou um cursinho pré-vestibular para mulheres trans e travestis. Foi nessa época que sua trajetória de ativismo e militância começou.
O gatilho aconteceu em 2015, quando uma empresa de ônibus se negou a imprimir uma passagem com seu nome social. Ao defender o direito de pessoas trans escolherem seus próprios nomes, a futura deputada ganhou um alto engajamento nas redes sociais, resultando na conquista do seu objetivo e reconhecimento na luta contra a violência de gênero.
Em 2016, Hilton se filiou ao PSOL e, no mesmo ano, candidatou-se ao cargo de vereadora de Itu (SP), mas não se elegeu. Dois anos depois, como codeputada, fez parte da bancada ativista na Assembleia Legislativa de São Paulo (ALESP) através de uma chapa coletiva, que foi eleita com aproximadamente 150 mil votos.
Já em 2020, a ativista precisou deixar a ALESP para concorrer ao cargo de vereadora da cidade de São Paulo. Naquele ano, tornou-se a mulher mais votada do país e se elegeu com mais de 50 mil votos. Em uma entrevista à revista GQ, Érika conta sobre a importância de ter uma mulher trans e preta ocupando uma cadeira na Câmara Municipal da capital paulista. “Estamos rompendo com uma mazela histórica da ausência desses corpos. Até agora, haviam sido eleitas apenas duas mulheres negras, o que revela o racismo institucional, estrutural e estruturante da nossa sociedade. Ocupar aquele lugar é trazer à tona e visibilizar o nosso corpo, nossa luta, nossa história, pautar a política que precisamos e que queremos,” comentou.
“Nós, corpos negros, trans, periféricos, podemos existir e atuar para além dos espaços que nos foram sentenciados, como as esquinas, o cárcere, os manicômios, lugares de desumanização,” explicou.
Ao longo do seu mandato na Câmara dos Vereadores, Erika presidiu a Comissão Extraordinária dos Direitos Humanos e Cidadania, ganhando ainda mais visibilidade no meio. Com isso, ela decidiu concorrer ao cargo de deputada federal.
Em 2022, Erika fez história ao se tornar a primeira mulher trans a ser eleita deputada federal por São Paulo. Com mais de 250 mil votos e uma das 10 candidaturas paulistas mais votadas, a deputada do PSOL se tornou uma protagonista na luta pela defesa dos direitos humanos, igualdade de gênero, racial e social dentro da Câmara dos Deputados.
Com uma trajetória política que se iniciou com a disputa pela Câmara Municipal de Itu e chegou até Brasília, Erika foi incluída, pela segunda vez consecutiva, na lista das “100 Lideranças que Mudarão o Futuro” da revista norte-americana Time.
Vivência no Congresso Nacional
Na segunda faixa do álbum “Roteiro para Aïnouz (Vol. 2)” de Don L, o compositor canta sobre o fundamentalismo religioso: “Depois do massacre ergueram catedrais; Uma capela em cada povoado; Como se a questão fosse guerra ou paz; Mas sempre foi guerra ou ser devorado; Devoto catequizado; Crucificar em nome do crucificado; Seu Deus é o tal metal, é o capital; É terra banhada a sangue escravizado; Jesus nunca estaria do seu lado; Não estaria do seu lado.”
A vida imita a arte. Erika, enquanto primeira mulher negra e travesti na Câmara dos Deputados, é alvo constante de ataques transfóbicos e critica o conservadorismo no Congresso Nacional.
Em setembro deste ano, durante um discurso na comissão que discutia o projeto de Lei contra o casamento homoafetivo, a parlamentar utilizou de seus 15 minutos de fala para denunciar colegas de Câmara. Para Erika, os deputados conservadores buscam, através de suas manifestações, criar uma guerra que nem mesmo existe no Brasil entre a comunidade LGBTQIA + e os cristãos.
Assim como Don L, a deputada afirma: "Eu tenho certeza que se Jesus voltasse hoje, não seria com vossas excelências que se sentaria, seria conosco, os oprimidos, os humilhados.”
A lista de afrontas e ataques por parte de outros parlamentares direcionados à deputada é extensa. No entanto, Erika se mantém firme: “E nós chegamos sim até aqui, mas não só para discutir os direitos das mulheres transexuais e travestis. Porque eu não sou apenas uma mulher transexual, travesti, eu sou uma mulher assim como a senhora, queira você ou não, na sociedade”, rebateu a deputada após outra parlamentar afirmar que na Comissão da Mulher, mulheres trans estariam roubando o espaço de “mulheres de verdade”.
Em outra ocasião, durante Comissão Parlamentar Mista de Inquérito dos atos golpistas no 8 de janeiro, ao ser debochada por parlamentares que causaram tumulto na sessão após uma piada homofóbica vinda do deputado Abilio Brunini (PL-MT), a parlamentar se posicionou: “Não aceitarei, não tolerarei ser desrespeitada, interrompida ou colocada em situações de baixo calão ou de baixo nível. Trato todos os colegas com respeito, com diplomacia, e exijo o mesmo tratamento. E aqueles que fugirem dessa diplomacia terão de responder criminalmente por qualquer tentativa de estereotipar a minha identidade”
Violência de gênero
Durante uma entrevista à TV Brasil, Erika denunciou a violência que sofre dentro do Parlamento. Segundo ela, sua vivência na instituição lhe causa mais medo do que entrar no carro de um desconhecido durante a madrugada. “Essa analogia serve para dizer vejam: eu enquanto deputada eleita com a visibilidade que tenho, hoje talvez corra mais risco do que quando era uma adolescente perdida numa esquina de prostituição,” expõe. “Isso não é para minimizar os riscos que essas meninas estão correndo, é só uma analogia para que a gente consiga comparar e ter a fotografia do que é a violência política de gênero hoje no Brasil”, completou.
Segundo o Ministério da Mulher, a violência política de gênero pode ser estabelecida como a agressão física ou simbólica, que impede ou limita a mulher ao acesso e exercício de funções públicas. “O ambiente político ainda é muito tóxico para as mulheres, que são comumente ofendidas, humilhadas, ameaçadas e desrespeitadas exclusivamente em razão da sua condição feminina”, afirmou Maria Bucchianeri, a ministra substituta do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), em uma entrevista ao CNJ.
Apesar de afetar todas as mulheres, a situação é ainda mais violenta quando envolve a mulher negra na política. A ministra observou que inúmeras parlamentares negras demandam proteção especial para si e suas famílias, devido ao volume de ameaças que recebem.
A violência política de gênero agride os valores democráticos por apartar mulheres dos espaços de poder, deixando esses espaços sob domínio de pessoas que são, majoritariamente, homens brancos héteros cisgêneros. A presença e atuação de Erika na Câmara dos Deputados, portanto, é uma afronta à masculinidade e branquitude que estão enraizadas na sociedade brasileira.
Moda enquanto fazer político
Erika também ousa desafiar a “cafonice” dentro do parlamento, assim como a forma com que a política é estruturada: “Eu acho que a política tem que ser renovada em tudo, desde a roupa até a forma como se organiza. Do jeito que é não funciona, pelo menos para nós. Funciona para aquela casta de homens brancos que sempre estiveram lá. Quando você olha para uma parlamentar que tem referências de moda, que se parece com você e com as pessoas do seu convívio, que parece um ser humano normal e que está lá e tem projeto… A gente não está brincando, isso é importante frisar, não é que a gente traz um pop e banaliza o fazer política”, comenta a deputada a Vogue Brasil.
A parlamentar, que cruzou as passarelas do São Paulo Fashion Week de 2023, entende a moda como parte de seu fazer político, e acredita que essa seja uma das maneiras de introduzir os debates à aqueles que não se identificam com a clássica imagem do poder, passando por cima de um discurso excludente.
Em entrevista à revista Marie Claire, a deputada defende que “a população negra, indígena, LGBTQIAP+, sempre viveu em situação de subalternidade em todos os aspectos, desde os direitos civis à representação imagética no ambiente da moda. Mas mesmo dentro desse contexto histórico, político, social e econômico, a gente seguiu caminhando.”
Como Erika define, a crise em Brasília é estética. "Sempre olhei a política como algo muito cafona. Ela é cinza, tem uma linguagem rebuscada, não tem uma aparência bela exatamente porque se pleiteia a distanciar as pessoas daquele lugar.” A deputada exalta: "Não preciso me adequar a uma forma cafona para ser respeitada!”
Nossa equipe entrou em contato com a assessoria da deputada Erika Hilton, mas não foi possível marcar uma entrevista por questões de agenda.